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A Vida em Tempos de Festival do Rio (para não-cariocas)

Sinais de mudanças? A enorme fachada em obras do shopping Rio Sul (passagem obrigatória da maioria das cariocas na Zona Sul) está nua em 2007: desde sua primeira edição, não houve um Festival do Rio sequer que não a cobrisse com sua publicidade-tema (mais o primeiro do que o segundo). Atualmente, ainda que o pôster do festival faça-se presente em grande parte dos pontos de ônibus da cidade (mas nenhum outdoor – pelo menos, até agora), o acontecimento do Festival do Rio marca presença modesta – bastante modesta, se comparado com todas as edições anteriores - nas perspectivas e conversas do cenário cultural carioca. É como se o evento hesitasse em se fazer mais presente, como se sofresse o risco de ser cancelado no último minuto. É, inclusive, o perigo iminente de todo e qualquer evento cultural brasileiro (dizem-me que o evento foi privado de 3 milhões de reais que lhe seriam dedicados; o que seria bom é saber para onde foram).

Não foi a última mudança no padrão pré-Festival do Rio de abordagem ao público. Na maioria das edições (não vou arriscar a dizer que foram todas, pois não me lembro se foi assim nas primeiras vezes), a programação “completa” do Festival (aspas, pois qualquer festival está apto a inclusões e exclusões de títulos durante sua temporada) saía num suplemento do Jornal O Globo no sábado da semana que precedia a abertura oficial. Este ano, filmólogos, cinéfilos e afins tiveram uma manhã decepcionante: nada de suplemento. Ainda que venha a ser publicado na – mais vendida – edição dominical (estou supondo, amanhã veremos)*, a quebra do costume desequilibra um comportamento ao qual muitos haviam satisfatoriamente se acomodado. Tão essencial tornou-se a publicação sabadinal (isso é uma palavra?) que outros eventos cinematográficos cariocas também adotaram o dia da semana como propício ao lançamento de suas publicidades: semana passada, a programação do último ReCine foi publicada nos mesmos moldes do festival de cinema em questão.

As mudanças não são todas ingratas: ainda que a vinheta do ano passado trouxesse plágios, desculpem-me, “referências” (é assim que se chama plágio nas empresas publicitárias; veja-os assaltando vídeo locadoras em busca de “referências visuais”) de várias outras obras audiovisuais que apreendessem um “Rio de Janeiro/cinema de sonho” (especialmente do suspense húngaro “Kontroll” – a menina fantasiada dentro do metrô – e do clipe de Spike Jonze para “California” da banda Wax – o senhor correndo com o corpo em chamas), era uma evolução dos anúncios simpatiquinhos e cariocas demais de anos anteriores, que pretendiam estabelecer os ídolos do Festival (assombroso o ano em que cinéfilos precisaram encarar os dedos cabeludos do pé de Luigi Barricelli ou a presença de Luma “I love a man in uniform” de Oliveira fazendo o-corpo-do-burro-não-é-transparente frente ao pôr-do-sol) e a atmosfera de glamour ao qual o Festival parece pretender em alguns momentos, recorrendo inclusive a clichês cinematográficos. É tão estranho que, em seu evento maior, o Grupo Estação, que graças ao bom Deus se aventura a abastecer o país com uma proposta alternativa ao cinema comercial corrente, acabe se permitindo ser representado por alusões a Forrest Gump.

Apenas se outras instituições ao redor do Festival do Rio também optassem pela mudança. Explico – e isso é essencial para os não-cariocas saberem. Todo ano, o caderno de cultura e entretenimento publicado na primeira sexta-feira de festival do supracitado jornal, recicla a mesma ofensiva reportagem na qual o leitor é convidado a realizar um teste para descobrir a qual tipo de público e mostra pertence. O jornal adjetiva venenosamente o leitor com apelidos que falham em se popularizar no vocabulário dos freqüentadores (aquilo que os jornalistas, aspirantes a trendsetters, secretamente desejavam) e a lista de filmes proposta para cada “segmento”, ainda que correta, sugere somente o óbvio, sem apontar para apostas que o leitor primeiramente não arriscaria. Pode ser prematuro escrevê-lo e o referido jornal reserva uma grande surpresa em 2007, mas tal reclamação justifica-se pelo histórico sólido até então. Mais além, no balanço geral sobre os erros e acertos do festival, certamente teremos reclamações sobre o sistema de legendagem eletrônica, cuja sincronia, localização na tela e tradução deixam a desejar. Noticiá-lo esconde como o público na realidade, é compreensivo com o sistema (sabem exatamente que é a melhor opção) e tolerante (não é sinônimo de “conformado”) com suas eventuais falhas. Até o surgimento de tecnologia melhor – não podemos parar de buscá-la – seria mais digno se pudéssemos relatar tantos os acertos quantos os erros da legendagem eletrônica. Digo isso por causa da exibição de “Inimigos do Império” no Espaço de Cinema 1 no festival do ano passado. Filme chinês ao qual o responsável pela legenda eletrônica foi obrigado a sincronizar sem o auxílio de legendas em inglês impressas na cópia (o filme veio purinho de seu país de origem), a sessão de meio-dia transcorreu com a precisão de uma máquina: o texto entrava e saía de cena nos momentos exatos, resultado de um esforço, diria, miraculoso do pobre diabo resignado àquela tarefa ingrata. A legendagem correu a perfeição tal que, ao evidenciar como o sistema pode ser satisfatório com um tanto de sorte e atenção do operador, aplausos deveriam ter sido-lhe dedicados.

O slogan da edição 2007 do Festival do Rio lê-se: “Cinema: o espetáculo de todas as telas”, acompanhado de uma espécie de mosaico multi-formatos cinematográficos e digitais montando imagens de cartão-postal da cidade (praias, pontos turísticos, etc.). As mais características das peças de mosaico, poderemos reconhecer, são as que representam a tela de um palmtop, de uma janela de reprodutor de vídeo em flash e de uma janela de quicktime (há também a tela de uma televisão de plasma/LCD, um fotograma de película, etc.). A mais “abstrata”, por assim dizer, é o retângulo cinematográfico padrão – ou, como a geometria reconhece, um retângulo e ponto final. Não há nada que realmente caracterize a tela cinematográfica por si só além de suas dimensões engrandecidas e aqui temos, talvez, a primeira campanha publicitária do Festival do Rio que acomode em si não apenas uma chamativa ostentação (é inclusive sua campanha mais visualmente modesta), mas uma idéia, uma discussão sobre cinema: o espetáculo de todas as telas é para todas as telas? As mesas de discussão abertas neste ano prevêem debates, entre outros, em cima da crescente onda de pirataria no mundo inteiro e do casamento entre vários formatos de mídia audiovisual. Antagonismos são previstos. A grande questão é menos sobre tecnologia – já estabelecida no modo de consumo especular cotidiano e que agora só amplia seu alcance para classes sociais antes excluídas dos avanços – mas uma de distribuição de cultura (questão que já estaria mofada pela idade, não fosse seu uso constante). Será que queremos os já anunciados e aguardados grandes planos de abertura e fechamento de um “Stellet Licht” experimentados pela primeira vez por nós no visor minúsculo de um iPod Video ou de um reprodutor de vídeo no computador? Claro que não. Mas quando não há acesso convencional ao filme (nem todos os cinéfilos do Brasil moram no Rio e em São Paulo, ou tem dinheiro, liberdade e condições para adotarem temporariamente essas cidades em épocas propícias ao seu cinema), a decisão é mais radical: ver o filme da maneira que dá ou morrer sem conhecê-lo? Faz-se necessário que o cinema se torne espetáculo com todas as telas. Considerando o filme de abertura do festival, pode-se dizer que tal objetivo já foi alcançado. Mais além, da mesma maneira que faz pouco sentido freqüentar em festival a pré-estréia de um filme prestes a entrar em cartaz dentro de poucos dias após o término do evento, qual é o sentido de se freqüentar a sala de cinema para se assistir a filmes cujo lançamento em formato caseiro é iminente? Muitos defenderão a experiência cinematográfica, sem considerar que esta se transformou há muito tempo. A falta de educação do público, os altos preços e as condições das salas (preservação das antigas e diminuição das escalas das telas das recentes) fazem a conveniência contemporânea muito mais atraente do que a preservação saudosista de um espetáculo que banaliza-se e deterioriza-se pelos fatores acima citados – e aos quais os gerentes de salas parecem fazer vista grossa, uma vez que iniciativas não são tomadas (também deveríamos perguntar se esse é sequer seu papel: de fato, a falta de educação pertence ao público). Por isso a tarefa de criticar-se um evento como o Festival do Rio, ao qual o freqüentador só quer ver maior, melhor, mais abrangente, mais eficiente, num país que tende a sufocar suas manifestações artísticas, é ingrata, algo que se faz com reticência. Ninguém quer contribuir para sua extinção.

Eventos com celebridades e celebridades eventuais à parte, o Festival do Rio é merecidamente reconhecido por sua imensa programação, o que implicaria em maior abrangência, muito mais pela quantidade do que pela curadoria. Pois na edição de 2007, o trabalho de uma curadoria se fez muito mais evidente, especialmente na mostra Panorama Mundial, que traz infiltrada em si uma mini-mostra de cinema português contemporâneo (some-se ainda aos longas “Portugal S/A” de Ruy Guerra, “Dot.com” e “20,13 Purgatório”, a presença dupla de Manoel de Oliveira com o afrancesado “Belle Toujours” e “Cristóvão Colombo – O Enigma”, e do episódio de Pedro Costa em “O Estado do Mundo”), a transformação da Mostra Dox na mais temática Fronteiras, fazendo com que a Panorama assimilasse os documentários dissidentes (dois explicam-se: são dois filmes sobre Michael Moore, ainda que apenas um seja dirigido por terceiros), dois(!) filmes sobre o circuito de vale-tudo (nenhum deles na mostra gay; que aliás, vem forte neste ano, mais pelo conteúdo e menos pela massa muscular) e a completamente inesperada presença de “O Homem que Desafiou o Diabo” fora da Première Brasil. Talvez seja um erro do release de imprensa, mas até sua correção, vamos nos divertir com a idéia que a curadoria reclamou a brasilianidade de Moacyr Góes com seu suassunesco cine-repentista, boneca de barro souvenir de marujo do Queen Elizabeth II. É bem o que o cinema deslumbrado da Globo Filmes ambiciona: ser cinema hollywoodiano, ou pelo menos de padrões hollywoodianos, ou melhor, ser um cinema acima-brasileiro. Ostentando na escala das produções, na reciclagem do star-system e linguagem televisivos, e no alto número de incautos que se arriscam na bilheteria, conseguiram o acima-brasileiro. Falharam foi no cinema. Diabo por diabo, melhor escolher o de Sidney Lumet (“Antes que o Diabo saiba que você está morto”) ou o argentino “Satanás”. Melhor ser você mesmo xenófilo e deslumbrado do que um diretor global sendo-o por você.

O futuro é incerto. Por ora, filmes.

* Segundo assessoria do Jornal O Globo, o suplemento só será publicado na edição de segunda-feira.

****
Serão dias puxados, já que a cobertura do Festival do Rio atrapalhará-se com a realização do festival mineiro organizado pela Zeta Filmes (Deus, é muito se pedirmos que tudo corra bem?), mas estou nos cinemas cariocas até o final do evento e minha ambição é cobri-lo custe o que custar. Aproveito, para os amigos do blog e curiosos, compartilhar a alegria de alguns desenvolvimentos do INDIE – Mostra de Cinema Mundial.

Quem acompanha os posts e os comentários há mais tempo, sabem que existem alguns filmes específicos que venho sugerindo, desejando, propondo para a curadoria do festival. Essa semana acabamos vivendo nosso pequeno momento “O Segredo” do ano, no qual o pensamento positivo atraiu alguns longas inesperados para Belo Horizonte. Digamos que, segundo os comentários alguns posts abaixo, um comentarista ficará bastante feliz de realizar seu desejo de conhecer certo filme no cinema (tu vai estar em BH, não é?). E esse é só um dos filmes. Não demora, a programação do INDIE entra no ar, logo ficar fazendo suspense é besteira; mas sem autorização, nada de citar títulos. Só posso dizer que um dos filmes citados nas reportagens sobre o movimento mumblecore (e um daqueles mais defendidos por mim) – um filme que orbita muito mais na esfera de “The American Astronaut”, no entanto – está na programação e poder apresentá-lo no Brasil particularmente me enche de satisfação, assim como o diretor chinês em ascenção que poderemos apresentar ao público brasileiro pela primeira vez. Ou então o superpremiado não-terror inglês. Ou a febre dos cinéfilos japoneses que abalou o distrito de Shibuya em 2006. Poder conciliar essa apresentação de novidades de vanguarda com alguns títulos de grande visibilidade em festivais mundo afora e que saciem a cinefilia/filmologia dos espectadores mineiros é algo que causa grande satisfação.

A programação oficial do INDIE - Mostra de Cinema Mundial será divulgada no dia 26 de setembro.

  Bernardo Krivochein    domingo, setembro 16, 2007
 
 
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