Dreamachine: Pesadelo dos Filmes Estrangeiros nos EUA? (O texto acaba virando sobre outra coisa)
(via Indiewire.com)
O anúncio que fez tremer o mercado cinematográfico internacional foi a fusão das duas das distribuidoras mais influentes em âmbito global: a HanWay (encabeçada por Jeremy Thomas, que já produziu filmes de Bernardo Bertolucci, Terry Gilliam, Martin Scorsese, entre outros) e a Celluloid Dreams (presidida por Hengameh Panahi, adorada no meio por não restringir o seu approach a um ângulo puramente mercadológico, sempre agenciando filmes de diretores como François Ozon, Abbas Kiarostami e Takeshi Kitano) serão tranformadas na "gigante" Dreamachine, com o ex-Intermedia Tim Haslam como CEO. A previsão é que a Dreamachine inicie suas operações durante o Festival de Cannes próximo.
Porém, ao contrário dos amplos catálogos das duas empresas, a Dreamachine se restringirá a adquirir apenas 15 filmes, sendo apenas 4 ou 5 deles de língua não-inglesa. Essa estratégia tem o intuito de permitir à empresa maior envolvimento em projetos de maior escala. Isso significa um grande golpe para o cinema estrangeiro em águas especialmente norte-americanas, ao que estariam perdendo um importante canal de acesso ao território. Abaixo, a compilação das declarações de Panahi:
"Poderemos aumentar nosso envolvimento em cada filme, ajudar os diretores a realizarem filmes maiores, ajudar produtores a melhor produzir seus filmes internacionalmente e ajudar os distribuidores a melhor promoverem os filmes que traremos a eles. Mas o único problema para mim é abrir mão dos meus filmes menores, o que é difícil pois eu os amo. Ao mesmo tempo, eu percebo que não há mais economia para esses filmes. [ao adotarmos o filme menor e com menos potencial comercial] Nós estamos ajudando o mercado a ficar mais lotado e ajudando o distribuidor menor a ficar mais frágil."
Marie-Therese Guirgis, ex-presidente da defunta Wellspring, sintetizou o sentimento cinéfilo geral: "O que será dos Jias, dos Dardennes, dos Sokurovs, dos Panahis. Quem apoiará e distribuirá seus filmes?"
As declarações de Panahi não podem ser interpretadas como oportunistas, ao que nenhum dos filmes que estão sob a asa da Dreamachine podem ser considerados exatamente mainstream. Mas nomes como Todd Solondz, Todd Haynes, Ira Sachs e Richard Linklater já são estabelecidos no mundo cinematográfico (não que isso signifique que eles não poderiam usufruir de facilidades para produzir seus filmes) enquanto o cinéfilo anseia em poder descobrir novos nomes, novas linguagens. O que existe é o risco de um provincianismo cinematográfico - já existente na produção internacional e, agora, regendo a disseminação das obras. Panahi vê no tirar-o-time-da-Dreamachine-da-reta uma oportunidade do distribuidor menor adquirir os direitos de promoção de títulos independentes que a competição Celluloid-HanWay encarecia, o que em teoria até é bonito, mas tenho sérias dúvidas de que a banda tocará dessa forma.
"Todos estão se afogando em volume." Para Panahi e seu catálogo de 20+ filmes que "afogavam países com filmes de arte que não tem mais público." Tenho um problema com essa declaração. Com a Internet, creio que a cinefilia retornou com uma força até então desconhecida: não apenas o pensamento cinematográfico se disseminou como se democratizou (via blogues, e sites que remetem aos fanzines, mas com uma qualidade digna das melhores publicações profissionais), mas o acesso aos filmes tornou-se mais direto (via P2P, como as locadoras repletas de DVDs importados). Um elogio na Internet faz da espera por um filme que pode ou não chegar aos cinema locais insuportável - e isso nenhum distribuidor soube dinamizar: a janela entre lançamento nas salas e no home entertainment. Pois um filme que chega aos cinemas brasileiros (após ficar meses mofando na prateleira até encontrar um espaço entre as esparsas salas de cinema) já teve seu DVD importado transferido para a seção de catálogos. Essa é a principal paulada no êxito internacional dos filmes: de arte ou comerciais.
Outra questão toma forma nas expectativas nada realistas dos produtores que negociam seus filmes a custos altíssimos, por acreditar na possibilidade de lucro de sua obra em costas estrangeiras, quando os filmes certamente estarão relegados a um circuito limitado. Sem contar os lugares que não podem nem contar com um cinema de arte local que garanta ao espectador o acesso à obra. Mas quando os distribuidores americanos queixam-se que o cinema "estrangeiro" está em dificuldades no mundo inteiro, em termos de Brasil, é engraçado de ouvir. Entrevistado por Marília Gabriela, Leon Cakoff, da Mostra Internacional de São Paulo, declarava que o circuito brasileiro era o segundo melhor do mundo, perdendo apenas para a França. De fato, o circuito cinematográfico é algo que o brasileiro não dá muito valor e deveria; são os ingressos a preços absurdos e o (ainda) ridículo número de cinemas (ainda mais se lembramos que a grande maioria é voltada ao blockbuster) que o prejudica. O circuito dos EUA também é riquíssimo, mas acesso aos filmes estrangeiros apenas nas metrópoles - e em cinemas geralmente pequenos, antigos e distantes.
Anthony Kaufman, em seu blog, alerta: "amantes de filmes de língua estrangeira melhor fazer um upgrade no HD e nos softwares de seus computadores, pois é exatamente para lá que [os filmes menores] estarão destinados num futuro não-tão-distante. Agora, isso é uma coisa ruim? Não necessariamente." Claro, se essa filosofia americana imperar, aí sim é que o distribuidor menor se fode: o distribuidor ESTRANGEIRO menor, nos mercados onde os americanos, acreditem ou não, o cinema de língua estrangeira não apenas foi assimilado como representa a maior fatia dos mercado. O filme grego uploadado nos EUA que pode ser baixado no Brasil, na França, na Itália? Quem é que vai querer distribuir essa merda?
Todos vêem na distribuição digital (para cinema ou home entertainment) a saída para o filme independente não-hypado/estrangeiro, quando o download é o destino inevitável para todos os filmes, independentes de serem circuitão ou circuitinho (ou sem circuito algum). A preocupação é a janela para poder descobrir novos nomes, discutí-los, destacá-los. Panahi diz que a única outra opção para os filmes menores/estrangeiros são os festivais de cinema, o que sempre foi ponto pacífico, mas eu iria além.
Quando falamos do movimento Mumblecore, mencionei um artigo de Ella Taylor no semanário L.A. Times, do qual cito:
"(...) entre eles jovens bloggers de todo o país que (...) são um novo gênero de escritores. Muitos deles começaram a blogar porque são cineastas e se definem mais como comentadores ou 'anunciantes espalhando as boas novas' do que críticos. Muito mais do que uma fraternidade de velhos críticos rabugentos de jornal, os bloggers se vêem como parte de uma comunidade que inclui o elenco, equipe, ociosos da Internet e qualquer um que queira ouvir. Ainda assim, se isso é uma comunidade, é uma que se une por alienação e indefinição."
Em tal citação, podemos acusar: a) a ingenuidade de acreditar que não existam comunidades na imprensa dito respeitada e que seus repórteres não sejam movidos por jabás de quaisquer tipos, e; b) que uma voz crítica não possa surgir dentre os vários indivíduos que essa comunidade - que como ela próprio indica, não é fechada.
Todo filme que se preze precisa ter uma aura de antecipação o cercando e, atrapalhada que sejam as técnicas dos bloggers cineastas, eles fazem por onde e de maneira muito mais generosa do que a publicidade dos grandes estúdios e distribuidoras. É como se gentilmente convidassem o internauta que os descobriu a apreciar o filme no qual participou. Quando eles encontram um espaço, tal Aaron Katz que encontrou no Pioneer Theatre um lugar para a bem sucedida exibição de um mês de seu filme "Dance Party USA", o filme torna-se num evento que o espectador tem gosto de compartilhar, não é corriqueiro como os filmes que se oferecem pelas ruas. Percebo que não comentar sobre os filmes que exibimos no INDIE é um erro, pois não podemos indicar as mesmas fontes que nos fizeram ansiar por programá-los (oxalá esse blog nos dará chance de fazê-lo). Então o espaço é muito mais do que os festivais de cinema: é preciso mais do que uma ou duas semanas de imersão cinematográfica, precisamos do ano inteiro, precisamos de um terreno baldio, é preciso cineclubes, é preciso locais dedicados à cinefilia doentia onde seja permitido quebrar a programação convencional em prol do filme que merece ser descoberto. Toda casa e todo computador já o é hoje em dia, mas para o indivíduo apenas. É preciso a fisicalidade das comunidades virtuais, é preciso se reunir em torno da fogueira para "ouvir" essas histórias de duas horas. E são precisos mais, muito mais "filmes menores".
Bernardo Krivochein