Fosse fazer um filme agora, eu filmaria 3 horas de coisas quaisquer e sem nenhuma ligação apenas para A.R. Rahman musicar. Quanto será que ele cobraria?
Meu despertar para a obra de A.R. Rahman foi tardio, mas ainda em tempo. "Lagaan: Era Uma Vez na Índia" (2001) foi o primeiro filme autenticamente Bollywood que assisti na vida, é o único que tenho (orgulhosamente) em DVD. Ainda que o cinema indiano de Bollywood me encante, se o acesso hoje em dia deixou de ser um problema (vou arriscar e dizer que muito provavelmente "Lagaan" é o único filme do gênero jamais lançado no Brasil) continua muito difícil manter uma espécie de filtro, decidir o que vale a pena ou não ser visto, dado o enorme número anual de produções realizadas. Como é o caso de qualquer indústria, não são todos os produtos que merecem ser consumidos. Mas foi por causa do interesse que descobri Ram Gopal Varma (e seu espetacular filme "Company"), que foge dos moldes musicais de tal cinema, e, finalmente, A.R. Rahman. Se tenho esses nomes anexados aos créditos da produção, meu interesse está automaticamente no nível máximo.
Demoram mais de 30 minutos para que o primeiro número musical de "Lagaan" surja na tela, mas quando acontece, especialmente o impacto auditivo é inesquecível. Todas as canções do filme são assinadas por A.R. Rahman e eu me assegurei de nunca mais esquecer esse nome. Como um típico filme bollywoodiano, o fator de revisita é um bocado taxativo, dada a longa duração, mas não tenha dúvidas que superada a covardia de colocar o DVD para rodar, o prédio inteiro pára ao som da trilha-sonora que explode escandalosa do home theater. Um dos último domingos de 2006, passei a tarde inteira assistindo o referido filme de Ashutosh Gowariker enquanto a casa, cheia por causa dos feriados, lentamente foi se acumulando em torno da tela plana. Mal terminada a minha sessão, foi a vez dos espectadores casuais atrasados, exigindo para assistí-lo desde o começo. Assim, "Lagaan" foi posto para uma segunda sessão - e que foi reassistida na íntegra.
Mas seja no fantástico "Dil Se" ou "Bombay", no seminal "Roja" (eleito pela TIME Magazine uma das 10 melhores trilhas-sonoras já feitas) ou na trilogia elementar de Deepa Metha (cujo episódio final "Water"ele assina com Mychael Danna) ou no chinês "Guerreiros do Céu e da Terra", a trilha-sonora torna-se a estrela. Hibridizando melodias orientais (é filho do compositor cinematográfico R. k. Sedhar Mudhaliar, convertido ao islamismo, realizando turnês mundiais como tecladista desde os 11 anos junto à orquestras e artistas indianos) com orquestrações eruditas ocidentais (é formado em música clássica ocidental pela Universidade de Oxford), a música de A.R. Rahman é emocionante porque é imprevisível. Pode-se imaginar as grades da partitura se espiralando até os céus em busca da nota mais aguda possível para o arranjo - o trajeto nunca é o mesmo. A grandiosidade nos temas de A.R. Rahman não equivalem a uma opulência cafona e não apelam a temas fáceis como trilheiros ocidentais tais quais John Williams. Você literalmente não sabe para onde os arranjos estão indo - o que te excita - mas todas as notas, todos os passos dados parecem fazer parte de um plano maior. E a música se estende, se alonga, rodopia numa montanha-russa dentro de sua cabeça, ao ponto que sua perspectiva da rua de dentro da janela do ônibus está completamente virada e A.R. Rahman - vibrando para fora dos seus headphones e incomodando as pessoas em sua volta. Poderia-se dizer que a mistura de influências culturais é a responsável pela novidade, mas reduzir a potência das obras de A.R. Rahman a isso indicaria um cansaço criativo, o que parece bem longe de acontecer. Nem andar ao lado de más companhias como Andrew Lloyd Weber parece macular seu gênio. A música de A.R. Rahman não é maior do que a vida; é tão grande quanto a vida. Não é opressora, muito pelo contrário: convida ao espectador/ouvinte a imaginar-se por ela acompanhado. Até porque é pop até o caroço.
Nada mais adequado para filmes que flutuem soltos feito a vida do que uma música que abrace a imprevisibilidade e denuncie um grande plano mágico, um enquadramento solto e espontâneo. Meu iPod Shuffle foi pra cucuia há muito tempo (por causa de conflito de software na hora do update, mas tudo bem, devo comprar outro daqui há pouco espero), então meu CD Player foi desenterrado, assim como a coleção portátil de CDs, a maioria compilações caseiras em CDs sem rosto, mas reluzindo entre elas, a trilha sonora importada de "Dil Se", indecifrável, irresistível e infalível nas viagens de ida e volta ao trabalho ou aos compromissos. Dedico meu filme imaginário de 3 horas de duração às músicas de A. R. Rahman.