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Não importa o filme que se vê, mas o filme que se faz.

Na página oficial da ZetaFilmes há uma nova entrevista com o diretor/roteirista/ator John Cameron Mitchell sobre seu filme "Shortbus". A citação que abre o link segue assim: "a experiência de se fazer um filme é mais importante do que o resultado." A declaração de Mitchell é uma das mais oportunas a surgir nessa era cinematográfica. Há muito tempo, o cinema já deixou de ser ilusão de ótica, porque todos conhecem o mecanismo que o realiza de cor (será que estaríamos próximos do conceito de Imagem Modelo, segundo Paolo Cherchi Usai?). Mais além, o cinema foi vítima da era das desmitificações, que criam fenômenos tais como "O Código Da Vinci" ou revistas sobre intrigas entre celebridades, alimentando o desejo de grande público de sentirem-se superiores aos ídolos e/ou bem-nutridos com o revelar de seus podres potencializados. A experiência de se assistir um filme prevê imediatamente a desconstrução de sua fantasia em seus termos técnicos, especialmente na era do DVD e seus "extras" que detalham o passo-a-passo das produções. Nada é deixado à magia, tudo é referenciado em manuais de instruções, termos que se popularizaram entre os espectadores casuais graças a uma cultura de críticas cinematográficas burras instituída nos meios de comunicação a partir dos anos 80. Nesses textos, os autores, a fim de reafirmar a autoridade de suas cotações gratuitamente oferecidas, vomitam seus termos técnicos de primeiro período de Escola de Cinema (ou de Jornalismo, haja visto a possibilidade de eletivas friamente voltadas à prática crítica) como se isso fosse uma validação automática de sua perspectiva arrogante (essa tradição perpetua até hoje entre os críticos mais populares - até porque os críticos que instituíram essa filosofia continuam na ativa; em nenhum momento estou me abstendo dessa acusação e que eu já tenha caído nessa armadilha me é causa de grande arrependimento, prova da minha ignorância juvenil, prometo que me esforço para sair dessa escrita viciada).

É uma época outra. Vejamos o exemplo de "300 de Esparta", adaptação dos quadrinhos de Frank Miller pelo diretor Zack Snyder, superprodução realizada no esquema "galpão digital" tal qual "Sin City" (também baseado na obra de Miller), "Casshern" e "Immortel". A estréia do produto final nos cinemas ainda está há dois meses de distância, porém os making-of's - na forma de "diários de produção" - estão perfeitamente disponíveis na Internet, em pílulas de vídeo. Tomando a partir do trailer, vemos a completa inexistência dos desertos, dos exércitos em grande escala, dos mares revoltos; só o "blue screen". O que acontece quando o espectador vê a realização das filmagens, conhece o processo de projeção e depois assiste ao filme completo é o além-Imagem Modelo? Como e por que o espectador assiste ao filme sem que a completa desmitificação o incomode?

Talvez seja porque o que se vê na tela já se libertou do estigma de concretizar fantasias e apenas propõe idéias, imagens e ângulos. Uma sugestão é mais palatável do que uma ordem, pois é acatada sem tanto debate. O que se verá em "300 de Esparta", independente da avaliação final que o espectador dará, será sempre a sugestão para uma aventura visual segundo Miller e Snyder. O quanto essa aventura irá capturar a atenção e imaginação do indivíduo, a saber após a derradeira experiência.

Essa é só uma ramificação periférica de um raciocínio inspirado pela declaração de Mitchell. A questão é outra. Bem outra, aliás. Andy Warhol dizia (cito em paráfrase, porque a tradução tem um play-on-words): "Cinema é muito fácil: é só ligar a câmera e o filme se faz sozinho." Por anos eu debati essa declaração, achava que Warhol estava fazendo pouco do processo cinematográfico, que envolve todo um dedicado processo de conceitualização, produção, o esforço de uma equipe profissional, etc. Novamente, um preciosismo técnico pessoal influenciado pelas já citadas "críticas burras" e pela filosofia corrente sobre o que fazia de um filme "bom" (que é bem uma ampliação da mentalidade Syd Fieldiana de roteiro para o âmbito técnico). Eu era otário pra caralho - me custou perceber a beleza da declaração de Warhol: não interessa a iluminação, não interessa o ângulo, não interessa o roteiro; o que você escolher filmar - e você tem a liberdade de escolher o que bem entender - invariavelmente se tornará Cinema. Parece que a Vida aumenta de escala quando se torna Cinema, mas isso depende do grau de afeto que você nutre por um ou pelo outro. Para os amantes de Cinema, elevar a Vida ao mesmo patamar é a maior das honras: é também se engrandecer (que, basicamente, é o que Godard queria dizer ao afirmar que "Pierrot Le Fou" era um atentado ao cinema, a vida em CinemaScope - mas Deus proíba que eu esteja fazendo eco à filosofia godardiana). Então, você deveria filmar o que bem entender e aceitar os erros de foco, os tropeços do diretor de fotografia, o gaguejar dos seus atores, o helicóptero na captação do som. Aceitar o dia de chuva quando o roteiro exige invariavelmente um dia de sol. Um filme só pode ser verdadeiramente ruim se a equipe não estiver vivenciando verdadeiramente as filmagens - é aí que a desmitificação do filme através de seu making-of acessível cumpriria sua função social de forma saudável.

É preciso acabar com a noção elitista de que o "fazer cinema" é apenas para os capacitados. Se os cineastas protegem a filosofia de que todos deveriam ter acesso ao "assistir cinema", por que o "realizar cinema" é mantido à distância do público? É aí que entra a maliciosa disseminação dos making-of's para o público, doutrinando-o com a imponência da maquinária, atores capacitados (academicamente ou geneticamente) e cenários em grande escala, de acesso impossível, mantendo-o acomodado na ilusão de que o "realizar cinema" dedica-se aos poderosos (isso é fato consumado exatamente porque são os poderosos protegendo seu território). Tal técnica de opressão não é tão diferente da disseminação do pensamento de inferioridade das raças. Enquanto a tecnologia cinematográfica avançou ao ponto de se tornar bastante acessível (para a classe média, sejamos claros), a perspectiva por trás da câmera pouco evoluiu desde que os irmãos Lumière escolheram o primeiro bebê para ser registrado pelo cinematógrafo. Branco feito leite, óbvio.

Com a disseminação dos making-of's, o longa-metragem final torna-se um simples propósito para a final experiência de filmar. O espectador não vive mais os filmes, mas deseja fazer parte de sua realização, quando não deseja ser o homem que os idealiza/realiza de fato. Ele já conhece o "set". "A experiência de se fazer um filme é mais importante do que o resultado". De fato, o é. Nunca mais o espectador abusado que ousa se transformar em realizador precisa se preocupar com a comparação de sua obra com outras melhor financiadas. Nunca ele deverá se preocupar em fazer do ato de filmar seu sustento (pense em Carlos Drummond de Andrade, servidor público e excelente funcionário). Nunca mais ele precisa se preocupar se sua obra será bem aceita ou sequer vista (quantas obras nunca vistas - ou perdidas - compõem a História do Cinema? Centenas). O "filme" talvez dependa dessas questões, mas não o "filmar", não a reunião de pessoas com o propósito da realização cinematográfica, registrando seus acidentes, sua corrente de pensamentos numa tarde de calor infernal, debaixo de um sol de rachar, fodidos e mal pagos. Antes pregava-se que a interferência do espectador em um filme se resumia ao modo em que ele o retrabalhava em sua mente. Hoje, o espectador deve interferir no próprio cinema. O espectador que não assiste meramente - o espectador que filma.
  Bernardo Krivochein    sexta-feira, fevereiro 02, 2007
 
 
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