A Minha Experiência Inesquecível de Cinema-Poeira
Para ser completamente sincero, sempre tive problemas com a idéia de "Grindhouse" sendo exibido em multiplexes do gênero Cinemark, UCI, etc. O projeto de Tarantino/Rodriguez é - ou era, já que fracassou (nota: "Death Proof", elogiadíssimo em Cannes, estreou em circuito comercial na França e, assim como o "combo" nos EUA, fracassou retumbantemente nas bilheterias) - uma homenagem aos filmes exploitation de toda sorte; filmes que não passam nem perto dos shoppings convenientemente localizados e guardados da violência urbana externa, filmes que seriam - e são - dispensados sem hesitação tanto por essas mesmas cadeias que o acolheriam quanto pelo publicozinho classe-média-alta bem nutrido metido a cult, batendo ponto na praça de alimentação. O projeto "Grindhouse" foi um fracasso principalmente porque os irmãos Weinstein barraram sua exibição em autênticos cinemas "grindhouses", como foi o caso em Washington à época do lançamento. Fez o filme parecer um simulacro meio vazio movido por uma nostalgia geek, mas direcionado a uma geração que sequer pôs meio pé num desses abandonados e ameaçadores cinemas de rua.
Era supreendente, em algumas viagens que eu fazia quando criança, notar que até as cidades de interior mais humildes tinham cinemas em seus centros - e cinemas que exibiam filmes que não chegavam às metrópoles: filmes de kung-fu da Condor Filmes ou, mais recentemente, filmes de ação estrelados por Gary Daniels, Don "The Dragon" Wilson e Daniel Bernhardt, aparentemente grandes astros naquelas regiões, a fachada dos cinemas decoradas com enormes cartazes pintados à mão. Eu só reencontraria esses filmes muitos meses depois, desovados sem o menor alarde nas prateleiras das videolocadoras. As pessoas os ignoravam, tomando-os como apenas actionexpoloitations genéricos, mas eu agora sabia de sua fama secreta. Cinéfilo brasileiro acaba sendo muito doutrinado pela cultura pop norte-americana e acaba lendo muito sobre esses sucessos underground de filmes de drive-in, grindhouses, sexploitations, etc. lastimando que essa cultura não existiu por aqui. A idéia de que tínhamos algo do gênero no Brasil - essas novas espécies de grindhouse que faziam sucesso fora das capitais - e ter testemunhado isso me diverte. Quem sabe com a Internet se democratizando, aumentem os testemunhos sobre esses "blockbusters de um bairro só".
Pude ter a experiência de freqüentar vários cinemas-poeira na minha infância e pré-adolescência (porém, na maioria das vezes para assistir a reprises de filmes de circuito, americanos, normais, com meu pai, o senhor Márcio Krivochein, nas quartas-feiras de meia-entrada), esses cinemas existiam praticamente por todos os bairros do Rio de Janeiro, mas a mais insólita de todas aconteceu num domingo sem nada para fazer. Estava eu, passando mais um feriado na casa da minha avó no agora já famoso e eternamente quente Cachambi, quando minha mãe resolveu aparecer para fazer um agrado e me levar, junto com minha prima mais velha e meu irmão mais novo, para assistir a um filme. Ir ao cinema, nessa época, já era um costume para mim e eu já tinha aniquilado todos os grandes filmes em circuito. Pesquisando o jornal em busca não somente de um filme como de um cinema naquela área, concordamos assistir a um filme cuja sinopse muito me instigara na coluna de "Reprises":
"Warlock - O Demônio" no Bruni Méier. Sessão das 17h.
Aprontamo-nos e seguimos para o Méier no Ford Verona novo de mamãe. A altura do Méier onde então os cinemas se encontravam (o Paratodos e o Bruni Méier) tem o corredor da linha do trem (isolada por cercas altas e atravessada por passarelas para pedestres) dividindo as mãos da avenida feito uma faixa intermediária, repleto de postes e cabos de eletricidade expostos e emaranhados. Eu me lembro de poder ver sempre as fachadas do cinema lá do outro lado - que até então eu nunca atravessara. A fachada art déco do Paratodos já na minha infância era decadente, imunda, mas o cinema era freqüentado sem preconceitos - inclusive recebendo lançamentos cinematográficos esperados ("Minha Noiva É Uma Extraterrestre" com Kim Basinger e Dan Aykroyd? ENORME sucesso no Paratodos). Já o Bruni Méier tinha uma fachada de metal alta, enferrujada, retorcida e faltando pedaços, cobrindo a arquitetura original, os letreiros imantados anunciavam os filmes e as sessões sem alarde e com fontes plásticas vermelhas antigas. O cinema tinha cara de ter sido há muito tempo abandonado pelo público e o ponto, apesar de não muito distante do Paratodos, estava se tornando bem ruim. Estacionarteria sido um pesadelo se o comércio não estivesse fechado. Para mim, o Bruni Méier teria de servir como olimpo - pelo menos por um domingo.
Pegamos nossos ingressos na fenda da parede que a gerência chamava de bilheteria - eu realmente não me lembro se havia de fato uma pessoa lá dentro - e adentramos a antesala deserta e um pouco ameaçadora, decorada com cartazes de filmes até conhecidos, mas carregando dobras de outras exposições. A antesala tinha o chão - e acho que também as paredes - de ladrilho plástico cinza com efeito marmorizado. Não sei porque me lembro disso. Deve ser porque, no final das contas, a sala cumpria seu dever de causar uma impressão metálica, através desse piso e das esquadrias de alumínio fazendo as vezes de rodapé. Esperando nossa sessão, entrávamos e saíamos da sala de exibição para ver se o filme tinha terminado e - nos achando espertos - pegar "dicas" do que aconteceria na história. As primeiras imagens de "Warlock" na minha vida foram a de sua seqüência final no cemitério - que fazia do filme promissor para mim - e da personagem de Lori Singer enterrando "algo" num deserto - que me deixara intrigado em descobrir o por quê. Agora, eu REALMENTE queria ver o filme.
Menos de dez pessoas. Acho que dois casais - bem separados - e nós. Meu irmão e eu, as únicas crianças no recinto. Minha prima e minha mãe, as mulheres indefesas, um pouco tensas. O filme começou e tinha aquelas legendas de fonte ainda meio quadrada anunciando a primeira encarnação o título brasileiro do filme: "Warlock - O Demônio Também Tem Filhos". Julian Sands era ameaçador e do caralho. Eu engasguei quando ele decepou o dedo do companheiro de quarto da protagonista e lhe sugou os olhos. Era a primeira vez que eu tinha visto aquilo. Se eu erro a mão no sal até hoje é por causa dele. Richard E. Grant nunca esteve tão mais foda - eu fiquei obcecado pelo herói Redferne. O filme tinha pose de superprodução (aquela seqüência inicial para mim era coisa de milhões de dólares, assim como a seqüência na fazenda) e eu não entendia porque qualquer cinema que o exibisse ficaria vazio.
"Um rato!", gritou um casal da frente. Aliás, eles nem devem ter gritado tão alto assim. O som do filme parecia estar sendo projetado de dentro de uma caverna.
Todas as mulheres gritaram. Minha prima mandou que sentássemos com os pés nas poltronas de courino já rasgado, abraçando os nossos joelhos. E assim assistimos "Warlock" até o final: com medo de sermos mordidos por ratos, todos com medo de serem atacados por alguém, todos no cinema desacreditando o filme. Quando o esperado final chegou - o confronto no cemitério que pode ter ou não seu solo consagrado - as tumbas de papelão do cenário caíam com os sopros do ventilador e o tecido imitando grama se enrugava com os passos. Minha prima, meu irmão e eu comentávamos ao pé do ouvido se o outro tinha visto aquilo. Cinema-poeira é um ambiente perigoso pelo somatório da localização, estrutura, ambiente e filme programado. "Warlock" acabou, as luzes se acenderam e estávamos fisicamente íntegros. A sensação de satisfação era alguns graus mais intensa: não era apenas a de se ter assistido a um bom filme, mas a de ter sobrevivido ao Bruni Méier. Comentamos com os nossos amigos de volta ao Cachambi o quanto o filme era até bom, mas meio vagabundo. E que no meio do filme, um rato adentrou o cinema.
"Warlock" é um dos meus filmes preferidos: o assisti em VHS várias vezes e pude constatar sua eficiência, sua criatividade e, acima de tudo, sua tenacidade em continuar com idéias maiores e mais ousadas mesmo que seu orçamento insista no contrário. Mas é claro que, se eu o reassisti várias vezes, foi com a lembrança de, talvez, a sessão de cinema mais divertida e errada da minha vida. Não estou idealizando a situação: o cinema era pequeno, desconfortável, horroroso, mas por uma hora e meia, tudo isso foi colocado a serviço de uma experiência única, incomparável e prazerosa. Pude descobrir um filme e pude descobrir um cinema. E ambos se potencializavam. Todo filme se beneficia da ambiência em que ele é exibido e, por mais conveniente que sejam os novos métodos e formatos de se assistir a um filme, é triste ter perdido isso. Mas não culpe os DVDs e os downloads: culpe o fechamento dos cinemas de rua, as barreiras alfandegárias que impedem mais filmes de chegarem em territórios brasileiros, e culpe o elitismo fascista dos multiplexes.