O Revoltante Contra O Qual Ninguém Se Revolta
Esperei para escrever o que se segue umas três semanas, porque me colocará numa posição vulnerável: vou falar da completa merda que é a crítica impressa, mais especialmente a carioca, e como o pensamento cinematográfico local através dos meios de comunicação convencionais (isso é, TV, Rádio e Jornal) estão fadados ao fracasso (se é que um dia sequer foram respeitáveis). Claro que pagam muito melhor - e disso explicitarei prova no texto abaixo. Isso me implica porque o texto pode parecer escrito apenas por puro recalque, se você me atribui o papel de crítico que deseja puxar o tapete de outros apenas para tomar-lhes o emprego, acreditando na minha arrogância ser superior a eles. Refaço aqui meu voto (que já fiz anteriormente em resenhas outras na página principal) de que não sou crítico e que não escrevo críticas, meramente textos cujos temas são filmes. Se o bloco vermelho lá na Zetafilmes.com.br anuncia "Críticas", é contra minha vontade e as editoras do site terão os e-mails para confirmar isso. Se me percebo como algo, é como o último espectador na face da Terra (haja visto que não existem mais espectadores assim auto-intitulados; todo mundo agora tem um PhD em entretenimento ou porra do gênero). Tanto que esperei três semanas para deixar o vento soprar os filmes e as composições citadas para um ponto mais distante e deixar a (imaginada) relevância do que quero dizer morrer.
Mas também se passaram três semanas e não consegui esquecer ou apaziguar a raiva.
Mas também se passaram três semanas e não consegui esquecer ou apaziguar a raiva.
"O Globo" é o nome do jornal a rigueur carioca. Explicações sobre o complexo ao qual o jornal pertence (ou melhor, que o jornal ajudou a criar) ou seu poder de influência sobre o território nacional são dispensáveis. Quer dizer, isso até interessará um pouco para nós, mas não se trata do cerne da questão. Como um jornal qualquer, toda sexta-feira é publicado seu guia de atividades extra-curriculares de fim-de-semana, ou guia cultural (sendo cultura um termo utilizado de forma tão abrangente quanto os grandes lábios de uma puta de estação central), se assim preferir.
Lá, a equipe de críticos e (ou?) jornalistas publicam o bloco de críticas cinematográficas em cima das estréias semanais, o que já supõe o primeiro problema: a identidade múltipla e esquizofrênica da posição cinematográfica da publicação. Como aquele bingo da festa junina no sítio da Dona Maria (aquele mesmo em que se marcam as cartelas com milho e feijão, para não inutilizar as cartelas para o ano que vem), os críticos sorteiam suas cabines de imprensa - independente de sua adequação para a tarefa ou não. (Se a publicação contasse com apenas um crítico, compreende-se que sua inadequação seria algo inevitável, uma vez que cabe a ele reportar em cima de todos os filmes da semana, mas qual seria o sentido de uma publicação conter vários críticos - e são bem mais de dois ou três, o que invalidaria a defesa em cima do número de filmes X número de repórteres, convenhamos que dois ou três críticos é um número mais do que suficiente para dar conta do fluxo - senão os nichos de especialização que cada um dominaria?)
Mas se essa estrutura é repetida no mundo todo (Cahiers du Cinema, Film Comment, todos contam com uma equipe de X críticos), qual seria o problema? Bem, 1) que é capaz que todas as publicações no mundo desse tipo possam estar erradas (apenas sugiro uma possibilidade: assim como você, uso apenas o meu eu individual, uno e indivisível, para assistir a todos os filmes que os vários críticos da Cahiers, Film Comment e O Globo falam, não?); 2) não é um problema de estrutura, mas de modus operandi: por critério que só pode ser identificado como o grau de popularidade de um filme em circuito, o Bonde do Boneco de O Globo escolhe esse ou outro filme para dispôr visões múltiplas de seus contratados - uma suposta abrangência que só serve para colocar a publicação num conveniente "em cima do muro" ("é muito bom!" diz um - "é muito ruim!" diz o outro, na coluna oposta e com o mesmo número de caracteres) caso o filme em questão tenha o potencial de dividir platéias. (Aliás, reforço que o critério não é a polêmica e sim a popularidade: filmes como "300", "2046" - sucesso entre a classe média de Ipanema/Leblon das novelas do Manoel Carlos, sabias? - e "Babel" ganharam essa honraria, enquanto um suposto polêmico "Baixio das Bestas" foi acomodado com apenas uma solitária, deslumbrada crítica positiva e burguesa)
Mas o acaso se ocupou em revelar o ridículo não dos críticos - porque apesar de tudo, todo mundo tem direito de achar o que bem entende (a palavra "opinião" e a utilização, explícita ou não, do termo "eu acho" sempre serão a chave), se bem que os críticos de O Globo abrem mão de sua personalidade uma vez que adotam o Bonequinho, a mesma cara, o mesmo corpo, logo a garganta é única (novamente: esquizofrenia, diferentes vozes no mesmo corpo...) - mas o da publicação, que acabou pagando o preço de sua filosofia crítica e mostrando-se ignorante... através da ignorância de seus críticos, mas não, eu nem digitei isso agora.
As seguintes críticas foram publicadas no mesmo suplemento Rio Show, na sexta-feira de Nosso Senhor de 1° de Junho de 2007, com nem uma página de distância entre si. Os grifos são meus e os textos estão linkados ao guia virtual de cinema de O Globo (que poderão desaparecer em breve, quem quiser dar um Print Screen, tem que ser agora), para mostrar que não estou de caô.
A primeira é sobre o drama dinamarquês "Depois do Casamento", escrita por Eros Ramos de Almeida:
"[Bonequinho dormindo] Um Dramalhão Nórdico: A diretora dinamarquesa Susanne Bier sabe onde posicionar a câmera. Enquadra bonito. Por isso, apesar de pingar mel desde o início, a improvável trama de 'Efter brylluppet' (no original) consegue sobreviver durante algum tempo. Além da bela câmera, elenco e trilha sonora são eficientes.
"Homem que cuida de um orfanato na Índia (interpretado pelo ótimo Mads Mikkelsen) volta a Copenhague, onde nasceu, para tentar obter recursos para a instituição e acaba se deparando com espantosos segredos do passado.
"Daí para frente, a elegante friagem nórdica vira cenário de um novelão mexicano. Susanne Bier reveste o seu filme de seqüências que chegam a ser embaraçosas de tão melodramáticas.
"O charme envolvente da primeira metade se perde em cenas patéticas. Todo mundo chora e o filme vira um dramalhão hollywoodiano. Só isso justifica sua indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro disputado este ano." - Eros Ramos de Almeida
(Para os leitores de outros estados que se assutam com a brevidade da crítica e a linguagem num jornal de grande circulação, eu digo: pra você ver...)
Fica logo clara a confusão cultural na cabeça do referido jornalista ("novelão mexicano", depois "dramalhão hollywoodiano") que tenta utilizar dos termos grifados para desqualificar o filme em tom jocoso, subentendendo que os gêneros citados tratam-se de subgêneros (não como prolongamentos, mas em termos de baixa qualidade). O mesmo Bonequinho que dorme, estava acordado interessado há algumas colunas atrás, como mostra o seguinte texto de Rodrigo Fonseca em cima do brasileiro "Inesquecível":
"[Bonequinho olhando] Com Sutilezas Cinéfilas: Paulo Sérgio Almeida, diretor que cometeu “Xuxa e os duendes”, segue a estrada dos filmes de mercado, na qual a invenção narrativa jamais pode comprometer a comunicação com a platéia. “Inesquecível”, derivado do conto “O espectro”, de Horácio Quiroga (1879-1937), vai nessa vertente. É cinema comercial. Mas há nele sutilezas artísticas impressas por um olho cinéfilo. E um Murilo Benício inspirado.
"O ator Diego (Benício) ama a estilista Laura (Guilhermina Guinle, estreante em longas), que, em uma viagem, teve um caso com o fotógrafo Guilherme (Caco Ciocler) — o melhor amigo de seu amado. Ao saber do romance, Diego provoca a própria morte. Mas, antes de partir, incumbe o sobrenatural de executar uma vingança. É o que parece, pois nada é como as imagens sugerem no filme. Nem sua aparente futilidade, que encobre uma delicada homenagem aos melodramas sobre perdão, com alusões a Douglas Sirk, William Wyler e cia." - Rodrigo Fonseca
Na crítica acima, não podemos esquecer da naturalidade latina do filme. Logo, o que temos em "Inesquecível", realizado no Brasil e baseado em texto uruguaio, segundo Fonseca, é um típico melodrama latino.
E, ao mesmo tempo, não é um típico melodrama latino. É no mínimo estranha a diferença de tom na voz do mesmo Bonequinho, ácido contra o dinamarquês e descaradamente condescendente com o filme nacional. Isso é perceptível no modo como no primeiro filme, o Bonequinho sugere a existência de belas imagens apenas para desclassificá-lo e no segundo, fala de imagens fúteis e ainda assim o qualifica. Qual seria o diferencial entre os dois filmes se ambos ora remetem ao melodrama latino, ora ao hollywoodiano? Por que no caso de "Depois do Casamento" ser melodrama é ruim e, no de "Inesquecível" ser melodrama não apenas é bom, é a aparente salvação dele?
Antes da sessão de "A Leste de Bucareste" (que já falei sobre em postagem abaixo) no Espaço de Cinema 2, o trailer de "Inesquecível" foi exibido, para embaraço total e completo da platéia obrigada a testemunhá-lo. Se anda como um pato, parece um pato e soa feito um pato... o cinema ganhou esse aroma de merda durante os intermináveis segundos das imagens de "Inesquecível" - e era apenas o trailer! Não vamos reforçar a desconfiança em cima da possibilidade de jabá (para o leitor brasileiro, é um cálculo quase automático a suposição que a referida produção da Globo Filmes, fadada ao mais completo fracasso porque simplesmente não se parece com o bom filme que certamente não é, ativa sua empresa "não-afiliada" batizada, por completo acaso do destino, de Jornal O Globo para uma última e desesperada tentativa de salvacioná-la pelo menos o respeito) e sim pensar no que nos dizem ambos os textos. O que o leitor teria que imaginar? Que melodrama é bom ou ruim? Se é ambos, qual o método científico para aplicar os adjetivos aos filmes?
O texto do Senhor Almeida revela sua completa alienação perante a carreira da dinamarquesa Susanne Bier, diretora de "Irmãos", exibido inclusive em cinemas nacionais, além de ter uma idéia pra lá de superficial do que se constitui um melodrama. Tivesse assistido aos filmes e lido o seminal "Melodrama - O Cinema de Lágrimas da América Latina" da especialista argentina Silvia Oroz, ele poderia compreender o objetivo do experimento de Bier: o arquétipo do herói, a temática de conflitos entre classes sociais em sociedades que não necessariamente abrigam essas camadas, os leitmotiv freqüentes ("o passado", "o tempo" e "a bondade") e, em termos de imagem, a fixação de um céu que seja único, característico da região, um céu de forte impressão e, claro, as lágrimas - tudo isso é Bier tentando traspôr o melodrama latino para a cinematografia nórdica e, ao mesmo tempo, numa manobra de extrema ousadia frente aos tempos de indiferença, atualizando-o, rompendo muito além das barreiras nacionais (outra característica do melodrama latino), mas transcontinentais numa era de globalização (que é inclusive colocada em cheque, tanto em "Irmãos" quanto no filme em questão). O cinema de Bier é novo, é híbrido e refrescante, mas ao mesmo tempo inegavelmente familiar. A perspectiva de Almeida é de um blasé ultrapassado, vinda de uma época na qual dramalhões exagerados eram cafonas e polainas eram o último grito da moda. A beleza do excelente "Depois de Casamento" é que, bebendo das mesmíssimas fontes que nutriram Almodóvar, Bier reverencia suas influências de forma respeitosa, séria, sem um pingo de ironia, mas nem por isso comportada (retorno à atualização do gênero) ou aborrecida.
E quanto ao texto de Fonseca (que disse que seria justo que o filme da Fatih Akin ganhasse a Palma de Ouro 2007 no lugar do romeno "4 Months, 3 Weeks and 2 Days" apenas para, reportando a vitória a contragosto, falar da merecida vitória do impressionante cinema romeno), bem, hoje, domingo de Nosso Senhor de 17 de junho de 2007, em seu artigo sobre "Duro de Matar 4.0" e toda a excelência de Bruce Willis, retiro a seguinte passagem:
"E até julho estréia no Brasil o filme que, para muitos críticos (nota minha: isto é, para ele mesmo), traz a melhor interpretação da carreira do ator: 'Nação Fast Food', de Richard Linklater, indicado à Palma de Ouro em Cannes, em 2006."
Proponho a você leitor duas coisas:
1) tentar encontrar na Internet algum texto de alguma publicação mais cricri em qualquer língua que contenha essa mesma hipérbole que ele utiliza no texto (afinal, são MUITOS os críticos que se referem a essa performance como a MELHOR em TODA sua CARREIRA);
2) Assista ao filme.
Sério.
Simplesmente assista ao filme e tente encontrar essa tal melhor performance de toda sua carreira. Estréia em julho nos cinemas, mas já podemos assisti-lo no Festival do Rio, está disponível em DVD importado há sabe-se lá quantos meses e na Internet o torrent já está tão velho que o link deve ter desaparecido. E aí quando você descobrir que trata-se de uma ponta de menos de cinco minutos num papel periférico falando sobre a "universidade bovina" (ref.: Os Simpsons), quero ver se você acha aquela a melhor carreira do ator. Porque se uma ponta minúscula é o ponto alto de uma carreira de um ator que é conhecido por todos os vários filmes em que é protagonista principal, o que temos é tudo menos um elogio à carreira de tal ator. E, ligando-se às críticas mal concebidas que compõem, seus elogios dizem o contrário dos filmes que imaginam exaltar, portanto, seus textos e Bonequinhos não servindo de parâmetro ou indicação para absolutamente ninguém.