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HERR DIREKTOR: O que o futuro reserva para Uwe Boll?

A notoriedade. É simplesmente o curso natural da sua carreira. Deixe-me explicar por quê:

Boll nasceu em 22 de junho de 1965 na Alemanha. Ex-boxeador, doutor em literatura alemã e autor de dois livros sobre o áudiovisual, Boll dirigiu seu primeiro filme, "German Fried Movie" (1991), com recursos próprios e distribuição independente. O filme se tornou um notável sucesso de bilheteria, chamando a atenção de produtores locais para financiar seus filmes. Assim, o diretor abriu sua própria companhia, Boll KG.

Para um diretor se manter num mercado de difícil acesso, ele só precisa realizar o primeiro filme. A qualidade destes e dos outros que se seguirão não interessa, inclusive podem ser completos fracassos (de bilheteria ou de conteúdo), porque se há uma coisa que rege o interesse de financiadores é a prova material: é melhor investir num fracasso enraizado do que apostar no novo - Boll se beneficiará disso e voltaremos a esse ponto mais adiante.

Uwe Boll arrisca alguns filmes em território americano e, independente da qualidade destes ("Sanctimony", "Heart of America"), ele os conclui. É o bastante para que a Sega ponha fé no diretor para adaptar o one-person shooter "House of the Dead" para as telas. Começa a saga de Uwe Boll.

"House of the Dead" é tenebroso. O filme é tão sufocantemente ruim que, mesmo assistindo em casa, cedi ao incontrolável impulso de roer meu próprio braço para me livrar da cadeira de tortura. Não bastasse, o filme integra imagens do próprio videogame na ação - algo que virá ser estudado com afinco por teóricos do cinema ainda por nascer (aliás, esse é todo o ponto desse texto). Porque sua falta maior não é ser um filme "ruim" no sentido de "tosco", mas no sentido de "chato". Tenha em mente quantos "clássicos" foram os filmes mais chatos da sua vida (não precisa confessar, só reconheça para si mesmo) para o meu objetivo final com esse post.

Enfim, o bichinho foi comprado pela finada Artisan, que ainda teve o descaramento de lançá-lo nos cinemas. Muitos filmes que podem ser considerados "bons" realizados e admirados por gente um pouco mais legal não conseguem esse destino, daí podermos considerar "House..." uma história de sucesso: o filme ruim, chato e mal-feito que consegue um destino estelar. Enquanto em bilheteria, o filme devidamente fracassou, aparentemente "House..." se bancou com as vendas internacionais. Havia uma mídia pesada por trás disso:

Os internautas.

A terrível recepção de "House..." por críticos da Internet deu fama a um filme solenemente ignorado pelos resenhistas da imprensa estabelecida. Mais além, destruir Uwe Bol se tornou esporte mundial, inspirando vários anônimos a compartilharem seus textos mais venenosos e jocosos para milhares de leitores rirem com o sofrimento da experiência de 90 minutos. Porém, Uwe Boll não compartilhou da piada e partiu para algo inédito: o confronto direto de seus detratores, inclusive citando abertamente os sites e pseudônimos em entrevistas e no próprio site. Com isso, Boll alimentaria mais a fogueira e ganharia o apelido Dr. Boll, disseminado imediatamente na rede.

Com o anúncio inconseqüente de seus projetos, Boll tornou-se também famoso por macular videogames com suas adaptações para a narrativa cinematográfica. Completamente regido pela apropriação descriteriosa de elementos "cool" de outras superproduções de sucesso, ele realiza o detestavelmente incompetente "Alone In The Dark", um jogo de terror altamente inspirado por H.P. Lovecraft, em suas mãos transformado em um filme-evento a la "Matrix" (inspirado mais pelas continuações do videogame do que o jogo original). Seu doutorado em letras se faz valer pelo bíblico prólogo escrito, recorde de maior texto em scroll da história do cinema (tão genial que me fez imaginar que Boll estava na realidade adaptando "Qbert"). "Alone..." é como o garoto retardado da escola que ainda vai vestido de gladiador de RPG no segundo grau (e se achando o máximo!), fazendo as pessoas em volta se indagarem se ele sequer se dá conta. Só assim para explicarmos o plano de Christian Slater para livrar a si e ao taxista do carro que os persegue ("eu salto do carro... você fica aqui e morre."), a superluta de kung-fu, exibindo habilidades doprotagonista que nunca mais veremos sendo colocadas em prática, a vagaranha Tara Reid fazendo o papel de uma supotamente inteligente curadora de museu (ela usa óculos e os cabelos presos! É CLARO que ela é inteligente, pôxa!) e ainda errando a pronúncia de "Newfoundland" (Se pronuncia "New-FIN-Land", a quem interessar possa), a pausa para sexo enquanto os personagens supostamente estariam correndo contra o tempo e a transformação da música "7 seconds" em um hilário hino romântico a ejaculação precoce, ou ainda, como no final, os monstros, que são vulneráveis a luz, ataca os protagonistas no típico final "Jamanta não morreu!" dos terrores americanos.

Imagine-se pendurado de ponta-cabeça pelo saco ao encanamento do último andar de um prédio em chamas. Isso é "Alone In The Dark".

"Alone In The Dark" foi uma produção mais cara que "House..." e, respeitando a lógica, teve um sucesso inversamente proporcional: um fracasso ainda mais retumbante que o filme anterior. Porém, nesse caso, tanto imprensas eletrônica e impressa estavam de olho: a repercussão da bomba atingiu ainda mais pessoas e fez a lenda se solidificar na cultura pop contemporânea. Exibições-teste do filme já anunciavam sua morte rápida e os textos se tornaram ainda mais ácidos e engraçados. Boll passou a dar entrevistas, Boll continuou a xingar e enfrentar seus detratores com ainda mais afinco, Boll tentou desdizer as acusações de fracasso, defendendo-se com números lucrativos de bilheteria que só ele via. A distribuidora (a Lions Gate, compradora da Artisan), claro, não viu tais números e finalmente o abandonou. Um fracasso total e completo, certo?

Boll anuncia mais dois filmes: "BloodRayne" e "Dungeon Siege". Ambas adaptações de videogames.

Mais ainda, seus filmes teriam orçamento ainda maior e os elencos se tornaram estelares: Michael Madsen, Ben Kingsley, Geraldine Chaplin, Jason Statham, Burt Reynolds, Ray Liotta, Leelee Sobieski. Como?!? Que macumba braba é essa que Boll fazia para continuar filmando, com orçamentos maiores e que chantagem ele fazia para assegurar atores renomados para seus filmes, mesmo com sua reputação de péssimo diretor?

Num desses timings do destino, o governo alemão anunciou que a partir de 2005 não estaria mais em vigor o ressarcimento do prejuízo de produtores alemães pelo investimento furado em filmes fracassados (uma lacuna legal do incentivo do governo alemão a cultura cinematográfica, dos quais muitos se beneficiavam). Especialmente nos EUA, os investidores eram todos alemães e os filmes de Uwe Boll, seus "Primavera para Hitler". Com esse anúncio, os detratores de Uwe Boll finalmente compreenderam a engenhosidade de seu maléfico plano de infertilizar o mundo através da ilusão da imagem em movimento e comemoraram o inevitável fim da era Boll.

Quanto ao elenco repleto de astros (ou de que já foram astros algum dia), o próprio Boll explicou o método: ele espera até o último segundo antes de ligar as câmeras para fazer seu casting, investigando atores que estão entre um projeto e outro. Foi assim com Kingsley, convidado para o elenco somente duas semanas antes do começo da fotografia principal: um trabalho onde ele só precisava descontar o cheque e "atuar pelo telefone", sem precisar esperar. Dinheiro rápido.

Vi 15 minutos de "BloodRayne" e desisti. Parei no momento em que Kristanna Lokken se consulta com a cigana de Geraldine Chaplin. Decidi que não era obrigado e já estava aborrecido com o filme até ali. Não ter assistido até o final foi uma boa coisa. Aprecio "BloodRayne" pelo que é: uma festa de góticos que se pode dar fast foward, parar quando quiser ou ainda atirar pela janela. Se "Dugeon Siege", agora se "In The Name of The King: A Dungeon Siege Tale", a versão de Boll para "O Senhor dos Anéis", provavelmente sem aquelas paradas chatas de desenvolvimento de personagens, roteiro, diálogo, ambientação, etc., será lançado ainda estamos por saber.

Não bastasse, Boll dirigu mais dois filmes nesse interim: uma - mentira! - não-adaptação de videogame, o filme de ziriquili "Seed", onde não apenas Boll tenta emular Béla Tarr ao seguir todo o trajeto do personagem, dirigindo do trabalho até em casa, abrindo porta, fechando porta, girando a maçaneta, etc., mas que começa com 5 minutos de imagens reais de animais sendo torturados e assassinados (segundo o colaborador Quint, do Ain't It Cool News: "raposas uivando sendo despeladas vivas e depois espancadas até a morte. Filhotes de focas sendo espancadas na cabeça... um animal despelado que parecia um cachorro, obviamente morrendo muito, muito lentamente, cachorros tendo seus crânios pisados por botas pesadas..."); como também, ufa!, a adaptação de um dos games mais politicamente incorretos já feitos para computador: "Postal". Mais além: mesmo fracassos, "House of The Dead" e "BloodRayne" ganhariam direito a continuações, mesmo que diretamente para vídeo (retornando ao ponto colocado anteriormente sobre como os produtores preferem apostar no já existente, mesmo que não seja garantia de sucesso, ao qual podemos adicionar "O Justiceiro 2", a continuação que ninguém pediu). É na realização de "Postal" que Uwe Boll atinge o ápice.

O jogo é baseado na onda de ataques de nervos que abateram vários carteiros nos EUA (daí, a expressão "to go postal" ou "going postal": ficar louco, ou, melhor, cair matando). O jogador controla o personagem principal - um carteiro - que parte para destruir a vizinhança, o centro da cidade e arredores, matando velhinhas, crianças (o grito da criança quando estouramos sua cabeça é muito, MUITO errado...), cachorros e peitando a polícia que o persegue. Típico material para Uwe Boll exercitar seu mau-gosto e sua falta de noção. Mas nem o filme, nem o jogo importam.

O que importa é que, numa estratégia de marketing óbvia, Boll convidou seus mais ácidos detratores para derrotá-lo em em partidas de boxe e, caso perdessem, fariam uma ponta em "Postal". Boll peitou seu mais ácidos críticos, provocou-os até convencê-los a viajar até Vancouver, onde filmava. Todos os quatro repórteres - Richard Kyanka (Something Awful), Jeff Snider (Ain't It Cool News), Chris Alexander (Rue Morgue) e Nelson Chance Minter, comentarista do IMDb, de 17 anos de idade - foram facilmente derrotados por Boll no ringue. Enquanto para muitos a porrada em críticos desaforados possa parecer catártica, ela não foi feita sem um bocado de malícia (os desafiantes foram escolhidos exatamente pelas suas inabilidades e falta de práticas esportivas - um dos candiatos a desafiá-lo contaria pouco tempo depois que foi rejeitado justamente pelo seu amplo histórico no boxe). A única coisa que conseguiu provar é que deve ser melhor boxeador do que cineasta.

Justamente por essa capacidade sobrenatural de mostrar uma intensa insensibilidade a praticamente todas as esferas: artística, pessoal, profissional..., é que Uwe Boll virá a ser celebrado daqui a alguns anos por futuros teóricos e escritores de cinema. Porque a cultura da Internet ampliou a promoção da crítica cinematográfica de tal forma que o fracasso de Uwe Boll é a única quase-unanimidade da contemporaneidade. E como tudo aquilo odiado passa a ser adorado em cinema - porque exerce um estranho fascínio de tentar compreender ou de simplesmente conhecer para também destruir - mesmo agora mobilizam-se fanboys enjeitados da Internet, para partir em defesa do cineasta odiado EXATAMENTE porque ele é odiado (melhor: incompreendido). Extatamente que, como eles bem sabem, o público é ignorante e eles carregam a chave para o conhecimento, apenas por serem da "oposição". O problema é que o tempo está passando e não há nenhuma validação teórica da obra de Boll surgindo - e ele pode facilmente ser integrado como artista da pósmodernidade que desagrega os valores das fontes que se apropria, apenas acumulando um relicário vazio de supostamente "cool" (mas já batido na época de lançamento do filme). Ou simplesmente "trash" e divertido por isso aí. Coisa de quem tem iniciação sexual com o cachorro da família e que eu nunca vou entender.

Parecia no início que eu escreveria a favor de Boll, mas nem meu tumor cerebral permitiria tamanho acinte. E que Boll se torne cult (repito: sei que está acontecendo), não me será nenhuma surpresa ou nenhum confronto. Melhor ainda, espero que se torne clássico, profundamente analisado por livros ou em publicações especializadas de culto. Porque aí sim, mais do que os fracassos de bilheteria ou inépcia em sua função, teríamos a confirmação definitiva de que Boll, afinal de contas, é chato para caralho.
  Bernardo Krivochein    terça-feira, dezembro 19, 2006
 
 
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