"Eu Não Quero Dormir Sozinho" e você?
Quando meu filho era pequeno, a pediatra me explicou algo que nos tirava do sério há meses: crianças, mesmo recém-nascidas, não gostam de dormir sozinhas. Elas fazem de tudo para ter companhia. Passado 10 anos, meu filho ainda hoje, todos os dias antes de dormir, pereguina pela casa tentando convencer a mim, ao pai, a prima, ou quem mais estiver nos visitando sobre a possibilidade de alguém deitar ao seu lado. Todo dia pergunto a ele: porque você não gosta de domir sozinho?
Quando me deparei com o título do último filme de Tsai Ming-Liang disse a meu filho que iria a este filme para ver se compreendia melhor o seu enigma do "Eu Não quero Dormir Sozinho".
Interessante a trajetória de Tsai Ming-Liang que saiu de um super-colorido e maluco "The Wayward Cloud" ou "O Sabor da Melancia" (2004, França / Taiwan, 112 min.) que é uma comédia musical ( que em alguma coisa lembra o absurdo-incompreendido-do- Indie-2006-desaprovado-longuíssimo-repetitivo- mas-de-qualquer-maneira-inédito "Naisu No Mori"... algum traço de galhorfa nonsense constrangedora, vc concorda?) para uma pausa escura e silenciosa em "Eu Não quero...".
Para os que ainda não viram, Tsai Ming-Liang volta a seu país de origem, a Malásia (ele mudou-se para Taiwan com 20 anos), para filmar sob uma névoa pesada e úmida que cai sob Kuala Lumpur, uma cidade onde nativos e imigrantes chineses e indianos convivem sem falar a mesma língua. Hsiao-Kang (Lee Kang-Sheng), um sem teto chinês, está abandonado depois de sofrer um assalto mas é salvo por um grupo de trabalhadores indianos, entre eles está Rawag (Norman Atun). Este moço indiano cuida de Hsiao-Kang com tamanha devoção, lhe dá banho, comida, e o deixa dividir o mesmo colchão. No início do filme, o colchão parece ser tudo. Um colchão velho abandonado pode siginificar muito na vida de um sem-teto. Encontrado na rua por Rawag, transporta o mendigo quase-morto, é lavado, arrumado para ser um lugar de descanso na sua improvisada casa dentro de um fábrica abandonada, mas que possui algo essencial para todos, mas principalmente para um indiano: água.
Mas quando se descreve rapidamente a sinopse de "Eu Não quero...", esta não revela exatamente o processo conceitual do filme, já que estamos diante de um filme que não é de forma alguma calcado numa narrativa ou numa história, mas sim em pequenas ações dos personagens. O tempo é outro, uma sinopse ao resumir uma insegura trajetória do olhar, aniquila a sensação ( acho que a idéia é esta mesmo que você fique inseguro). Torna-o palatável demais, fácil demais e isto não corresponde ao filme em si. "Eu Não quero..." se arrasta em imagens quietas, escuras e quase ( se não fosse cinema, eu diria) estáticas, aos poucos você conhece e acompanha Rawag, e as feições e comportamento de Hisiao-Kang também são observadas pela câmera à distância. Talvez não tenha nem um plano muito fechado no rosto de Hisiao-Kang, eu não conseguiria descrever seu rosto ( Lee Kang-Sheng que faz Hisiao-Kang é o ator fetiche de Ming-Liang e está em todos os seus filmes desde 1991).
O filme se passa nesta cidade, em torno destes personagens meio perdidos neste centro urbano abandonado e em resumo, ainda fazem parte dele uma mulher chinesa decadente dona de um bar que quase escraviza a garota Chy (Shiang-chyi Chen) que cuida também de um ancião em coma. Não há nada muito claro. Mas o cinema de Ming-Liang é sobre estas obscuridades e novamente sensações impressionantes de pequenas realidades que dizem muito mais do que a verdade.
Interessante observar que o cinema não combina muito com a verdade. A verdade é algo que não se pode dizer em palavras, dizem os budistas, mas tão pouco pode ser mostrada pela ilusão do cinema, não é mesmo? O cinema nos ilude e por isso saca em nós todo este gozo mais do que absoluto de entendermos que a verdade é mera ficção e que portanto podemos nos mergulhar nestes minutos de êxtase fantasmagórico, fantasioso, no qual não somos ninguém, a não ser aquele que tudo quer ver.
Mas de repente em "Eu Não Posso Dormir Sozinho" ("Hei yan quan"), você começa a enxergar aos poucos algumas verdades. Me perguntava por que o indiano Rawag cuidadava com tanto carinho de um desconhecido que ele encontrou na rua, porque alimentava-o, limpava-o e dava-lhe um lugar para dormir a seu lado, enquanto que a rebelde Chy cuidava com tanto eficiência e desprezo daquele velho ancião em coma? No amor, tudo é viável? Por que podemos gostar ainda mais de um outro estranho do que daquele que cuida de nós? Ao tentar enxergar o próprio filme e sua possível revelação deste rosto no bréu, vislumbra-se, como na água daquela piscina, como nasce o amor, ao mesmo tempo que nasce a escravidão. O abandono, o silêncio da solidão, o ato do amor , podem estar resumidos em pequenos atos, para si quase invisíveis. "Eu Não quero Dormir Sozinho" é assim, em certo sentido, uma pequena verdade muito próxima daquilo que todos nós sabemos o que é mas que é inominável em nós.
Retorno ao meu filho um pouco mais intrigada do que sai para a sessão, mas com um pouco mais de sagacidade.
(Francesca Azzi)
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