blogINDIE 2006


Desempacotando meu "Encaixotando"*

... put your junk in that box...

*(um alô pá rapaziada do Walter Benjamin)


"Surveillance" é o nome do projeto cinematográfico de Jennifer Chambers Lynch, no qual um agente do FBI segue rumo à Cidadepequenaqualquer, EUA para investigar um caso, mas todos os habitantes mentem cronicamente. No limbo desde o fracasso de "Encaixotando Helena" em 1993, "Surveillance" já conta com nomes como Bill Pulmann, Julia Ormond e Pell James (de "Zodíaco") no elenco, mas sabe-se pouco do projeto além de um genérico "thriller sobrenatural indie".

A notícia nem importa, (para falar a verdade, a notícia acima só foi escrita depois dos seguintes parágrafos) é só uma desculpa para compartilhar memórias de uma das maiores prostrações da minha vida cinematográfica. Eu era pré-adolescente a primeira vez que soube da história de "Encaixotando Helena", filme da filha de David Lynch - que já era considerado um diretor bizarro numa época que ele nem era tão bizarro assim. Para mim, não haveria pessoa no universo que não se sentiria instigada pela sinopse: homem decepa os membros de uma mulher e a mantém encaixotada! Genial! Incrível! Quem dera eu ter essa idéia! Um clássico cinematográfico, na certa!

O filme estreou nos cinemas em circuito limitado no Brasil e foi uniformemente esculachado e/ou ignorado por todos (vi um famoso/detestável crítico num finado programa de TV detonando o filme exatamente pelas mesmas razões que me faziam desejar assisti-lo, talvez uma precoce manifestação anti-crítica "especializada") , mas nem me interessava. Não demorou muito e numa das minhas visitas diárias à Videoteca do Leblon, lá estava o filme na prateleira de lançamentos. Aluguei-o como quem aluga o Santo Graal. E como era uma época em que eu não fazia tanta cerimônia antes de assistir um filme em casa (hoje em dia, eu faço um monte de viadagens, tento criar um ambiente de concentração, etc.), enfiei o cassete no ainda-moderno VCR de 4 cabeças da Panasonic - o único aparelho de VCR que tivemos durante toda a Era do Vídeo (1981-1999 d.C.).

Até alguns anos atrás, "Encaixotando Helena" era um dos filmes que eu tinha visto mais vezes (14 reprises), mas com uma peculiaridade: eu o detestava. Eu detestava - melhor, desprezava aquela porra de filme desde a primeira vez que o tinha assistido.

Mas antes um pouco de background: nessa época eu era pré-adolescente e tinha me mudado para uma nova escola outra vez (a sexta de um total de 8), algo que detonava minha auto-confiança e atrapalhava o processo de socialização. Pior: era aquela fase estranha que ninguém gosta de lembrar e eu era tão feio, mas tão feio (e classe média num colégio de riquinhos, e mal vestido, e alternativóide num colégio de playboys, e arrogante, e deprimido, etc.) que não bastava eu já me sentir mal comigo mesmo, as pessoas se davam o trabalho de atravessar a rua só para me informar do quão feio eu era (tome o tempo até o seguinte ponto-e-vírgula para rir, pois depois dele informarei algo triste; isso aconteceu de verdade). Cicatrizes para o resto da vida e eu não consigo nem passar na frente do colégio hoje em dia (o lugar era um purgatório: tive outros colegas que compartilham hoje da mesma ojeriza).

Antes que me desvie completamente, o motivo desse detestável flashback. Tinha o galã da sala, convenientemente chamado Fábio, que era um desses garotos que não bastava ter olhos verdes e cabelo bom, a genética também o favorecia na corrida hormonal, fazendo-o ser mais alto e parecer mais velho antes do tempo. Eu o odiava como se ele tivesse estuprado meu cachorro. Ah, e ele também era sociável e popular e engraçado e irresistível tanto para os playboys quanto para as garotas. Uma de suas marcas registradas era a padronização do final de suas redações: indpendente do assunto ser a violência, as eleições, as férias ou qualquer emoção sintética que as professoras tentavam extrair de um grupo de absortos, Fábio sempre (e eu digo "sempre") terminava as redações assim:

"...e aí minha mãe entrou no quarto e disse: 'acorda Fábio, que você está sonhando.'"

E as pessoas riam e riam e riam. Eu tinha que me desdobrar só para passar desapercebido e sobreviver ao colégio, e esse filho da puta só lá, peidando colorido.

Se você lembra do final de "Encaixotando Helena", já sabe onde isso vai dar. Após de duas horas completamente indiferentes à toda expectativa que eu tinha investido no filme, se revelando um thriller erótico/psicológico ao invés da aventura romântica bizarra protagonizada por um homem e um toco de mulher, o filme vai ao cúmulo de ser apenas um sonho. Se coração tivesse saco, foi lá que "Encaixotando Helena" enfiou seu proverbial pé metafórico.

Acho que vi "Encaixotando Helena" as outras 13 vezes (e estou contando apenas as vezes que eu oficialmente me dei o esforço de alugá-lo - pude ver ainda algumas reprises na Bandeirantes) por incredulidade. Antes de sequer ter visto o filme, eu tinha inventado um outro "Encaixotando Helena" inteiro na minha cabeça, inspirado pela possibilidade de se possuir um ser humano portátil não-anão. "Será que ele vai comer ela desse ou daquele outro jeito" e outros questionamentos logísticos afloravam. A minha imagem mental preferida era a de uma Helena rolando colina abaixo, fora de controle, e caindo dentro de um rio, boiando ao sabor da correnteza enquanto um desesperado Julian Sands corria para resgatá-la. O filme de Jennifer Chambers Lynch poderia ter tudo isso e ela preferiu fazer stripteases ao som de Enigma (a famosa "Melô do Padre") e jogos psicológicos/gramaticais. No fundo, acho que eu desejava que o filme fosse ser diferente a cada reprise - não literalmente, mas que eu desvendasse sua grandiosidade, o que nunca aconteceu. Ou talvez o revisitasse porque euacabava vendo o filme da minha cabeça, que era muito superior. Tempos depois eu me engajei em reescrever o roteiro para fazer um remake arte crítica pobre, que nem a garota que refilmou "Sonhos Rebeldes"(Valley Girl, hit dos anos 80 estrelando Nicholas Cage em início de carreira, que nunca passou nos cinema brasileiros - eu já vi e é uma'graxinha') com uma digital, cenários toscos e seus amigos no elenco e o remake se tornou peça de exposição em museu (queria até passar no Indie), mas o esforço era demais. Na última vez que revi oficialmente o filme, o "Encaixotando" mental tinha desaparecido da mente. Tive que me conformar. O filme que eu mais esperava na vida foi roteirizado pelo Fábio. O Fábio estava trabalhando em cinema e eu não.

Mente que trabalha sozinha sem supervisão está conspirando em destruir o corpo. Engraçado lembrar da cadeia descontrolada de associações que você faz quando se permite atingir por besteira. Parece que eu fiz grande caso da decepção do filme na época - o que faria de mim um loser completo - mas não foi o caso, mesmo embora eu não tivesse uma vida digna de nota e coisas como essa ocupavam um ridículo espaço nos meus pensamentos. Uns três ou quatro anos atrás, vi o tal do Fábio de novo de dentro do ônibus, saindo da Cândido Mendes, vestido-se dessa maneira afetada que os wannabes de modelos se vestem. Continuava com a mesma cara, mas fui atingido de súbito por uma observação, uma impossível de conceber na época do colégio, aquele microcosmos no qual querem resumir a existência dos alunos como indivíduos e, como conseqüência, fazem os adolescentes perder os parâmetros. Era algo óbvio, que eu sempre soube. Não é que eu tinha esquecido, mas a histeria coletiva em torno dele não me permitiu notá-lo, de dar-lhe o verdadeiro peso:

Caralho, o Fábio não tinha queixo.
  Bernardo Krivochein    sexta-feira, abril 20, 2007
 
 
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