Para aqueles que se aventurarão assistindo "O Orfanato" este fim de semana apenas no intuito de testemunhar a presença nobre de Edgar Vivar - o Sr. Barriga de "Chaves" - uma boa notícia: ele está na melhor parte do filme. A má notícia é que ele está quase irreconhecível, parecendo muito mais o comparsa de Borat do que o afável agiota do seriado mexicano. Mas é ele lá, na telona, num pequeno bom papel (ele aparece, faz alguma coisa e some minutos depois, junto com Geraldine Chaplin). Isso já vale a sessão - ainda que possamos argumentar que seja uma das poucas coisas que justifiquem a sessão.
Há algo que mina o potencial estupendo desta cena para o público brasileiro: ouve-se, se não pela primeira vez (dado o lançamento dos DVDs com som original), a voz original de Vivar - cujo tom mais agudo chega a ser inesperado - mas ainda por cima, ouve-se Vivar com sotaque espanhol. Poderíamos até supor que o ator tenha sido ironicamente dublado para não destoar sonicamente do resto do elenco.
Acho que meu take em cima de "O Orfanato" já está bem estabelecido: o filme me entediou ao nirvana. Mas eu tenho que sugerir algo: se houver uma sessão de "O Orfanato" dublado com a voz do Sr. Barriga como a conhecemos, há alguma chance do filme subir no seu conceito?
Sim.
Por isso, caso seja do seu interesse, eu teria que recomendar a sessão dublada, caso houvesse alguma. Somente a mera idéia de se ouvir a voz do Sr. Barriga (dublada pelo falecido Mauro Villela), associada ao ator do Sr. Barriga, não mais exigindo o aluguel, mas dando uma palestra sobre Jung (!) me atrairia o bastante para tentar retornar ao cinema. Convenhamos: não encontrei muito o que salvar do filme de J. A. Bayona (que, repito, tem estilo de sobra, mas é infectado por uma série de derivações e banalidades sem inspiração, provavelmente impostas pelos grandes nomes por trás da produção) , mas esse possível momento de nostalgia burra automática conseguiria se sobrepôr às deficiências múltiplas das quais sofre o filme. Trata-se de momento de fetiche que faz sentido apenas para quem associa "Chaves" à própria infância (portanto, não dando um aval automático ao filme em base de fixações pessoais, como muitos textos certamente farão) e, por bem ou por mal, é o meu caso de assombração pessoal que acaba se transferindo para o filme, mas não como signo de medo.
Pode parecer saudosismo intransigente, mas esse afeto é fruto nada mais do que da própria natureza do cinema, dessa estranha associação entre imagem e som independentes, desconexos, tornados inseparáveis, indistinguíveis. Ainda prefiro assoistir a todos os filmes que assisti na minha infância dublados. Eu não faço a menor idéia do que seja o Indiana Jones de "Os Caçadores da Arca Perdida" e do "Templo da Perdição" com a voz original de Harrison Ford (assisti "A Última Cruzada" no cinema - e no Metro Boavista, ainda por cima). Stallone? "Você é um imaturo, você é um cocô" forever. E assim vai para Schwarzenegger, Goonies, Gatinhas e Gatões, etc. Ter que assistir hoje a esses filmes na versão original não me parece uma experiência natural, me incomoda horrores, como se uma trilha nova, diferente e dissonante tivesse sido obrigatoriamente imposta sobre os longas. O som "original" (termo que precisa ser colocado em algum cheque, dada a natureza do som no cinema), para quem cresceu com outro som, um som secundário à época da primeira revelação, não poderia ser mais artificial. A natureza do filme é muda e o som uma fundação pós-moldada prevendo dar fluidez aos cortes, profundidade aos planos, credibilidade à ilusão cinematográfica, mas ele não pertence à película naturalmente, originalmente. A película é muda, o som sempre a dubla. Poderíamos portanto dizer que o som original é somente aquele que foi escutado pelo espectador ao assistir a um filme pela primeira vez. Que o espectador tenha sempre a sorte de descobri-los com o melhor som possível.
Bernardo Krivochein