Um cinema de homens
Se eu falasse aqui que John Cassavetes, o super cultuado diretor e ator americano considerado o precursor do cinema independente norte-americano, era machista, talvez eu estivesse com alguma razão mas talvez eu estivesse sendo um tanto injusta. Nos anos 60 e 70, a sociedade era machista, e como Cassavetes retratava os conflitos interpessoais da classe média americana, criticava a hipocrisia e a falta de comunicação na relação homem-mulher. Mas tudo isso com uma mão bem firme.
Falo especialmente de "Faces" e "Noite de Estréia" que assisti numa Mostra do CineSesc-Sp esta semana. Os cinco filmes são da coleção de Filmes do Estação, as cópias estão bem gastas e com legendas em português de Portugal, mas valem muito a pena, ver em cinema (35mm) a obra deste que foi um dos primeiros a executar uma produção fora dos grande estúdios, com atores jovens, buscando revelações, inaugurando, de certa maneira, o termo independente como conhecemos hoje - filmes densos produzidos intencionando um mercado de distribuição (o que é bem diferente de um cinema experimental que não visa "necessariamente" um mercado).
"Noite de Estréia" é de 1977. A história é tão forte e interessante que você nem pisca e se afunda no dilema de uma atriz de teatro Myrtle Gordon (Gena Rowlands), cheia de conflitos pessoais, que está estreando a peça " A segunda Mulher" que trata de um tema que aflige todas as mulheres: o envelhecimento. Myrthe se recusa assim a compartilhar o dilema da sua personagem, como se isto tocasse a sua própria decadência. Ela tem alucinações, e se sente perseguida violentamente por uma jovem fã de 18 anos, morta, atropelada na porta do teatro numa noite de muita chuva e assédio dos fãs.( Daí Almodovar se inspirou com certeza para o ínicio de "Tudo Sobre Minha Mãe").
Bebendo e fumando todas, segue sem saber seu destino como atriz em Nova York, começa a mudar as falas da personagem e se comporta de maneira estranha no palco, enlouquecendo o diretor (Ben Gazarra) e a autora da peça (a assustadora, Joan Blondell com 65 anos). Mas o mais interessante ali, a relação homem-mulher, enfatizada pela permissividade na qual produtor, diretor e ator convivem com a protagonista, uma diva bajulada por todos mas impressionantemente egóica e frágil. Na "Opening Night"ou noite de estréia, última e inesquecível parte do filme, Gordon irá estrear alcoolizada, sem condições de ficar em pé.
Os homens de Cassavetes são tão duros quanto imaturos, e isto ainda é a nossa realidade. Ele, que faz o ator par da personagem na peça e ex-da atriz do filme e par de Rowlands na vida real, está irresistível e jovial. Pensar que ele só atuou e filmou até 1985 e que morreu tão prematuramente em 89... Incrível como se vivia com uma certa pulsão de morte, escrita nesta margem que a vida acontecia. Os homens tinham que ser homens e fumar e beber parecia fazer parte desta masculinidade.
Em "Faces"(1968) isto fica muito claro. Apesar do filme ser um tanto histérico ( muitos diálogos, gargalhadas excessivas, gritos) predomina uma visão masculina da realidade. Desta vez Gena Rowlands é Jeannie, a amante que representa a solução para a desilusão dos homens diante da já obsoleta instituição do casamento. Como estes homens não querem perder um certo "status quo", adquirido com o trabalho e garantias do casamento numa sociedade extremamente careta, a solução parece ser: institucionalizar também a amante.
As mulheres tem um papel fundamental em "Faces", a mulher de Richard Forst (John Marley), Maria ( Lynn Carlin, um rosto incrível) resolve levar as amigas para viver uma noite depois que Rick lhe dá a notícia do divórcio. Ela e Richard tem um relacionamento sem filhos e sem muito sexo, talvez a justificativa para que ele procure a irresistível Jeannie. Mas a parte o desenrolar da narrativa, impressiona muito os diálogos entre homens e mulheres e seus papéis. Como os homens tinham que ser engraçados e espirituosos (sempre contando piadas e dando gargalhadas) e como as mulheres estavam subjulgadas a um papel coadjuvante, não são donas de seu próprio nariz, leia-se, desejo. Mas com o diferencial de que já sabiam disto. Já se sentiam excluídas do mundo masculino e estavam insatisfeitas.(Quando Maria fala que quer que Richard a leve para ver um filme do Bergman, ele diz não estar afim de se aborrecer aquela noite e critica o fato de que ela, ao invés de dormir com ele, quer ir ao cinema. Ela reforça que está entediada).
Cassavetes trata todos estes temas de maneira desafiadora, mostrando que a sociedade estava ali vivendo na ponta do abismo. Uma arqueologia do comportamento, numa visão masculina. A impressão que se tem é que algumas discussões tão debatidas por Rowlands e Cassavetes deveriam se repetir em casa, desta vez, de verdade. Na forma predomina um certo jeito "nouvelle vague" de câmeras incertas e próximas que seguem os personagens pelas belas e amplas casas dos anos 60.
*** Todos os 5 filmes exibidos foram lançados em DVD num pacote chamado John Cassavetes - Five Films que você pode comprar na Amazon.com, novo ou usado, se tiver uma boa grana sobrando.
Francesca Azzi