Sobre "Transformers"
Espero que você vá assistir "Transformers" (não precisa ser imediatamente - evite os cinemas lotados e aproveite a oportunidade rara de se assistir a um filme de Jia Zhang-ke nos cinemas brasileiros, já que "Em Busca da Vida", conhecido como o campeão do Leão de Ouro em Veneza "Still Life", tem previsão de estréia para essa sexta-feira; além do mais, com o caso do vôo da TAM, a estréia de "Transformers" se tornou um tanto inadequada, já que aviões caem a torto e a direito no filme, prédios são invadidos por veículos, destruição a la Bay, etc.), depois leia o que tentei elaborar em cima dele e que não pareça tão absurdo. Já fiz algumas correções a posteriori em cima do texto, mas fiquei com vontade de elaborar uma nota em cima de algo que nele escrevi, mas que se incluído ao texto, o estenderia ainda mais e desnecessariamente. Quando eu pedir a opinião dos leitores (que espero que ainda existam) em cima da questão, não é para pedir atenção, mas eu realmente gostaria de incitar um debate. O trecho que retiro do meu próprio texto é um tanto ríspido e pode causar fúria nos mais puristas, daí minha necessidade de me clarificar:
"É em diretores como Tim Story, Brett Ratner e Michael Bay, que sabem que estão lidando acima de tudo com produtos caros (filme-cinema e filme-além-cinema) e admitem isso ao público através da linguagem fílmica impessoal que adotam, que o público encontrará o verdadeiro cinema."
O "Cinema" ao qual me refiro no texto é o cinema pós-moderno contemporâneo industrial. Se eu falo que Bay, Ratner e Story são os verdadeiros gênios desse ramo de cinema, é sem a menor ironia. Está mais do que na hora das pessoas compreenderem que, na mesma medida em que multiplexes e cinemas de arte selecionam o que exibirão, o Cinema não é uma matéria única que respeita uma série de regras cristalizadas de qualidade (no sentido estético-narrativo, de nutrição intelectual, e não qualidade técnica). Há uma separação que o público e o pensamento crítico cinematográfico faz sem hesitar, entre o filme comercial e o filme de "qualidade", mas os parâmetros de avaliação entre os dois mantém-se os mesmos, como os métodos das produções (tanto no sentido da realização como no do impulso ao seu financiamento) de ambos os "gêneros" de filmes respeitassem a mesma filosofia.
Não que a obra de Bay, Ratner e Story até agora não justificasse o desprezo (pseudo) intelectual do qual eles são vítimas. Mas esse desprezo se tornou um lugar-comum, um clichê, um coringa conversacional para aquele cinéfilo pretensioso mostrar que seu gosto é refinado e respeitável, mesmo embora a única cinematografia que consuma sejam os filmes hollywoodianos populares e os grandes e cansados clássicos consagrados - esses últimos muito mais citados do que vistos de fato. Nessa separação feita entre um, digamos, Francis Ford Coppola e um Adam McKay, ele tenta estabelecer a tese de que, dentro do cinema comercial de adaptações de quadrinhos e "O Orangotango Radical", possa existir "arte" - tese que só serve para que ele se justifique a continuar consumindo o cinema americano - que é o único que lhe interessa consumir, pois essa parada de filme chinês que não vem com o aval do graaaaaande Tarantino (Putz, meu! Ele é fôuda, meu! Muito fôuda!) e não tenha chinês voando ou esbofeteando chinês, é muito chato - pois é o cinema mais fácil de compreender, é o que ele está mais acostumado, é o que tem o estilo de vida com o qual ele mais espelha suas ambições para sua prórpia vida (porque o bom na vida é ir numa festa de Halloween lá no Tênis Clube e encher o cu de Sidra Cereser: Iu-És-Ei! Iu-És-Ei!), é o que tem aquele ator loiro com o qual eu - de cabelo crespinho, crespinho - sou parecido e, convenhamos, é o que é mais tecnicamente impecável, tem mais ação, mais explosões, mais espetáculo, mais dinheiro. Só faltando o aval intelectual, inventam-se os Scorseses, os Coppolas, os Eastwoods, integrados ao grande sistema hollywoodiano e assim o embasando.
E não me entendam errado, os diretores citados fizeram (e talvez ainda façam) cinema de verdadeiramente artístico (arte no sentido "aristocrática e seletiva nos efeitos sobre o público" - Tarkovski). Mas para padrões do cinema pós-moderno industrial, para o padrão hollywoodiano portanto, eles são anomalias. Como os grandes diretores contemporâneos internacionais (e aí a gente cita uma cambada de nomes possíveis: Tsai Ming Liang, Hou Hsiao Hsien ou até Johnny To se quisermos manter a vibração China/Taiwan, poderíamos estender para Aoyama, Miike, Weerasethakul, Sang-soo, Ji-woon, Joon-ho - esses dois prontos inclusives para serem assimilados - Sissako, Costa, Denis, muitos mais ainda), se colocados frente ao grande demônio devorador norte-americano são estranhos. Não se pode dizer que, para os padrões determinados pela indústria hollywoodiana, os filmes dos indivíduos citados no parênteses sejam bons. As exigências prioritárias do filme hollywoodiano são completamente mercadológicas. Cito um trecho da crítica de "O Hospedeiro" feita por Kleber Mendonça Filho em seu site Cinemascópio:
"Longe dos multiplexes ocupados com os terceiros capítulos já bem cansados de Homem Aranha, Piratas do Caribe e Shrek que, com tanta garantia de exposição não se dão nem ao luxo de prestar, esse filme sensacional talvez mereça ser descoberto por espectadores com um gosto pelo fantástico."
E contraponho com as considerações de Andrei Tarkovski no texto "O autor em busca de um público" (publicado no livro "Esculpir o Tempo", Ed. Martins Fontes):
"Portanto, como produto, um filme faz sucesso ou fracassa, e, por mais paradoxal que pareça, o seu valor estético é determinado pelas leis de oferta e procura - por leis de mercado."
Mais adiante no mesmo texto, Tarkovski parte para defender a unicidade da visão do artista que não se permite ser rendido pelas exigências de mercado e do público para que sua obra seja mais acessível, mais palatável - reclamação número um do cinéfilo que estamos abordando ao desgostar de um filme: a obscuridade de sua lógica. Esse gênero de filosofia - que Tarkovski generaliza para toda e qualquer obra cinematográfica - pertence ao pensamento intelectual cinematográfico que exige do formato uma expressão artística mais potente. E qualquer cinema que desafie o espectador, é rejeitado pelo grupo de espectadores. Logo, o filme geralmente tido como realmente artístico nunca é o filme hollywoodiano, de grande apelo e fácil compreensão.
Assim sendo, os grandes artistas cinematográficos pós-modernos contemporâneos industriais são sim Bay, Story, Ratner que não dirigem filmes hollywoodianos; eles administram filmes hollywoodianos. Dentro da indústria a qual se prestam, eles correspondem aos padrões de qualidade, ou aos padrões que aquele círculo compreende como arte. Todos os filmes que dirigem são definitivamente bons até o momento que realmente começam frente aos olhos do espectador - pois foram eficientes o bastante para conduzir as massas até a bilheteria.
Sim, é um pensamento nefasto e capitalista. Mas espere um pouco: quem está fazendo filmes populares, mas sem a qualidade necessária para vender McLanches Felizes, bonecos, ou sequer DVDS? Alguém comprou o boneco comemorativo de Bruce Willis em "Armageddon" ou do Nicolas Cage em "A Rocha"? Não, porque ou os filmes não eram bons ou não eram memoráveis. Os filmes de Bay encerram em si mesmos um padrão de consumo. A qualidade artística cinematográfica atribuída a "O Senhor dos Anéis", "O Poderoso Chefão" ou até "Homem-Aranha" só serve para justamente perpetuá-lo (bonecos, box sets de DVDs, videogames muito ruins...). Aqui, nós temos a grande subversão que faz os filmes de Bay alcançarem a graça dentro do pensamento intelectual cinematográfico (de verdadeiros filmólogos, não de cinéfilo de shopping) - a linguagem publicitária que nada vende: apenas esteticiza a imagem cinematográfica hollywoodiana que, sem um produto em foco, acusa o seu deserto. Não é algo para se apreciar per se, mas que se evidencia, interessante para olhares mais aprofundados, interessados e, claro, menos preconceituosos.
Claro que a questão é paradoxal: aqui estou eu acusando os cinéfilos ocasionais que defendem os méritos artísticos de Hollywood através da exaltação teórica do diretor que mais a sintetiza. Não cabe a mim dizer se Michael Bay é arte - tanto que eu não o fiz. Quase, mas não fiz. O que devemos estudar é a forma como Bay e seus comparsas, tendo acesso a tantos milhões de dólares e se associando a projetos de grande interesse do grande público, são rejeitados justamente por grande porcentagem do público que o freqüenta fielmente. A necessidade que as pessoas precisam ser levadas a sério (coisa da carência fodida de brasileiro, que precisa ser aceito pelo maior número de pessoas possíveis - uma geração que "gosta de tudo", mas na verdade sem gosto definido, com medo de ser segregada por alguém atraente) as conduz para um estado de esquizofrenia: assistem a Michael Bay sem poder admitir que o apreciam, com medo do policiamento intelectual que assombra e julga. Será apenas quando admitirmos que não há possibilidade de arte em Hollywood, é que poderemos enxergar em quê a arte de Hollywood se consiste.
Bernardo Krivochein