Um dos filmes mais instigantes do ano só pode ser visto graças à Internet
Fala-se muito - e despreza-se muito - da distribuição cinematográfica digital mais como vilã do que ferramenta conveniente, uma vez que ela atropelaria o processo de cura da espera, banalizaria o filme com seu acesso garantido, assassinaria a aura de antecipação e o artesanato característico do formato de película. Sente-se falta da censura, do guarda de fronteira ditando o que podemos ou não assistir, da angústia de para sempre perder um filme. Esse risco não foi extinto, embora realmente tenha diminuído. Podemos compreender sim toda a aura que envolve a exibição de um filme aguardado nos cinemas, mas sofremos muito mais com a desigualdade cultural que impede que os filmes possam ser vistos por todos os interessados distribuídos pelo território nacional. Tenta-se transformar os filmes em itens de colecionador, onde os elogios dispensados a uma obra de difícil acesso carregam um tanto de desejo de humilhar aqueles que não puderam assisti-la, uma brincadeira infantil de "Eu vi! Você não viu!" Muitos ataques à experiência de se assistir a um filme baixado (no caso daqueles que não aportaram por aqui nem em festivais ou em DVDs - os casos são incontáveis, e não se espera que as distribuidoras brasileiras possam dar conta de todos os títulos, especialmente quando se tratam de casos com pouca possibilidade de lucro) são frutos do medo de que o espectador perceba que toda a argumentação teórica sustente-se muito pouco na experiência empírica.
Mas é fato que o acesso praticamente livre a cinematografias do mundo inteiro só veio a piorar o sentimento de sobrecarga, de enxurrada cinematográfica. Existem muitos cinemas, muitos filmes de interesse nesses cinemas e pouco tempo para esmiuçá-los, refleti-los. Precisamos ficar a par de cinematografias antes inacessíveis, dadas até como inexistentes e outras nascentes, emergentes. Percebemos as lacunas da teoria cinematográfica nacional, que escreveu livros e mais livros sem jamais ter acesso à obras fundamentais, a inadequação dos nossos melhores. Se multiplicam-se publicações sobre cinema exatamente na mesma internet que assoberba-nos de filmes, é justamente porque se fazem necessários guias para indicar-nos os títulos de maior interesse nesse catálogo infinito (e cada leitor deve encontrar uma publicação com a qual mais se identifique, daí a necessidade de existirem cada vez mais e melhores revistas eletrônicas - surpreende inclusive a qualidade de publicações onde não existem um movimento de cinema de arte expressivo).
"Though I Am Gone" é um potente documentário dirigido pelo cineasta independente Hu Jie. Nele, o documentarista acompanha a impressionante forma como Wang Jingyao registrou o falecimento de sua esposa Bian Zhongyun, professora do ensino médio em uma escola de elite que foi vítima de espancamento por alunas de sua própria classe, fanáticas da Guarda Vermelha, durante o "Agosto Sangrento" de 1966 (apenas uma das 3 milhões de vítimas da Revolução Cultural na China). As alunas eram filhas de funcionários de alto escalão do Partido Comunista, alguns deles ainda no poder. Como se liderasse uma investigação forense, "Though I Am Gone" mostra como o viúvo e filha de Bian Zhongyun mantiveram o cadáver após seu falecimento, banhando-o e limpando-o. Wang Jingyao comprara uma câmera fotográfica após a morte e com ela, ao registrar as evidências que cercam seu assassinato, acidentalmente constrói um dos documentos mais historicamente importantes dessa era.
Que o filme se faz disponível apenas pelo You Tube, perdido no meio da orgia de pequenos vídeo-piadas e outras inutilidades, vem, no entanto, a calhar. A mera escalação de "Though I Am Gone" na programação do Festival Visual Multicultural que seria realizado na pequena província de Yunnan incomodou tanto o governo que o levou não apenas a banir o filme, como também a cancelar o evento na íntegra. Hu Jie não se fez de rogado e, partindo em 10 pedaços, disponibilizou o documentário de pouco mais de uma hora na Internet. O caso ganhou a mídia internacional e causou sensação especialmente na Europa.
O que nos leva a refletir esses novos meios que acreditamos comuns, sem valor. Sim, a última coisa que viria na cabeça de alguém que busca qualidade de imagem e som, além do fator concentração durante a sessão, é o You Tube (eu mesmo vi o filme na íntegra depois de várias e largas pausas, sem a imersão que normalmente procuro ao assistir a um filme - ainda me impactou, no entanto), mas nessa era em que se dá o digital como livre e fácil acesso, devemos lembrar que até mesmo o You Tube é banido por completo na Tailândia - além de fatores econômicos e sociais óbvios em vários outros países que atendem ao discurso-clichê. Talvez não funcione muito como sala de exibição, é verdade, mas a Internet torna-se palco de algo muito maior e urgente em casos como o de "Though I Am Gone" - um drible no autoritarismo, na censura e nas políticas de mercado exibidor. Sem contar que é somente graças a ela é que podemos ter conhecimento de um filme, honestamente, bom pra caralho. Os filmólogos agradecem.