A QUESTÃO DA VIOLÊNCIA
Chegou-me uma mensagem de um leitor que veio a conhecer a página da Zeta Filmes através do comentário postado num texto do Zanin no Estadão sobre a estetização da violência nos filmes especialmente de Park Chan-wook. De fato, o há. Mas aí o texto do repórter do Estadão entra numa de que a violência de “Baixio das Bestas” justifica-se – e a de “Lady Vingança” não – porque Cláudio Assis a utiliza para acusar o atraso da região e a degeneração que ela impõe aos personagens, que a utiliza com nobres fins, o que é de uma ingenuidade e de uma imbecilidade politicamente correta de dar dó.
Em “Lady Vingança” a intensidade da violência só é equiparada pela sua superestetização, pelo exagero de sua mise-en-scene. O complô denunciado, o espetáculo assumido. A violência, ou pelo menos a ênfase e a intensidade como ela é representada em cena (e que afeta os estômagos mais sensíveis – mesmo que Zanin pareça preferir uma violência cinematográfica a qual se consiga permanecer indiferente...), é completamente desnecessária, dispensável. Já em “Baixio das Bestas”, para operar seu tom acusatório, Cláudio Assis dá aos atos de violência desse “mundo real”, até então sem sentido e repreensíveis, a função de enfurecer o espectador, de prova do absurdo. Representada sem glamour ou idealizações, a violência que era condenada, agora passa a ser necessária, justificada, indispensável, como artifício narrativo e ideológico. Filmes como “Baixio das Bestas” que fazem da violência explícita técnica de choque contra o espectador apenas servem para cimentá-la socialmente (a violência passa a servir para alguma coisa: inspira filmes engajados sobre ela; logo, torna-se necessário para o cineasta e para a platéia preservá-la). Filmes como “Lady Vingança” – e não precisa ser exatamente o próprio “Lady Vingança” - exorcizam-na, pois são tão artificializados e encenados ao ponto de neutralizarem qualquer credibilidade da cena de violência ou seu potencial de ser discutida seriamente (a questão dos trash movies, inclusive). Essa repreensão de uma violência cinematográfica em privilégio doutra é apenas sadismo maquiado de consciência social, que anseia pela violência não pelos risos debochados durante a sessão, mas pelas demonstrações pornográficas de conteúdo nas discussões de bar da pós-exibição.
Então mil desculpas, Zanin: não colou. Além de ficar óbvio para qualquer um que assista “Baixio das Bestas” – ou “Amarelo Manga” neste caso – que Assis possui fixação sexual pela imagem grotesca e pelo efeito estarrecedor que procura causar no espectador (todos os seus filmes parecem sempre se desesperar na reta final, transformando-se num circo aleatório de horrores, desesperados pelo choque a todo custo), fica também claro que você, e todos os comentaristas de seu blog que apóiam sua visão, ainda caem nesse equívoco moribundo de ir ao cinema procurando “realidade”. Quando vocês encontram aquilo que vocês assumem como “realidade” num filme (a representação que corresponda aos pré-conceitos pré-fabricados), torna-se o bastante para cegamente apoiá-lo, sem enxergar-lhe as contradições (caso do sucesso de “Tropa de Elite”, um filme que se define mais pelas suas omissões factuais do que pelo que se vê na tela, oh tão mais fabricado e estetizado do que “Lady Vingança”), cinema funcionário público que arranja um empreguinho para a amiga violência no balcão de atendimentos. É preciso resgatar a máxima de Godard - “Cinema é verdade 24 vezes por segundo” - dos maltratos de interpretações politicamente engajadas. O Cinema, por ser verdade, não traz exatamente a realidade da realidade, mas sempre a realidade do filme, que é o verdadeiro sentimento por trás da frase de diálogo que o contradiz, o sorriso do personagem que esconde a verdadeira tristeza do autor e, especialmente, as verdadeiras intenções de um filme quando seu autor, tão arrogantemente convencido de sua certeza, acredita estar realizando um j’accuse social e termina realizando um j’accuse pessoal de suas taras.
Bernardo Krivochein