Você já conhece esta história: um grupo consegue improvavelmente chegar à uma locação inóspita para se apresentar, mas um acidente interrompe seus esforços antes de cruzarem a linha de chegada. Porém, seu dramático esforço para superar os obstáculos acaba por conquistar o coração do público local. Esta é a sinopse de "Jamaica Abaixo de Zero". Foi também a sinopse do show do Interpol, na Fundição Progresso (RJ).
Sem querer ser provocativo, mas as músicas do Interpol eram para mim como alguns funks cariocas, músicas da Ivete Sangalo ou uns desses dance-farofas de rádio: você não gosta delas particularmente, mas sua presença se faz tão maciça ao seu redor que acaba-se absoverdo-as por osmose - quando menos se espera, lá está você assobiando o refrão de "Love Generation" inconscientemente. Principalmente no caso do Interpol - presença hors-concours em qualquer festa de rock alternativo (esse termo ainda se usa?), mas banda com a qual me encontro ligeiramente fora de sincronia emocional. Estes sucessos de pista dos nova-iorquinos caracterizam-se por um rebuscamento lírico (um tantinho pretensioso, convenhamos) à beira da verborragia, por um cinismo desolado(praticamente toda a letra de "Evil", discutivelmente o grande hit), e ainda alguma punição e determinismo ("Slow Hands" e "The Heimlich Maneuver"). Não que eu seja afortunado ou alienado ao ponto de não reconhecer tais sentimentos - evocados com maestria pelas letras de Paul Banks, é verdade - mas simplemente não me identifico mais com eles. Então, quando enfrentei a tempestade à caminho da Fundição Progresso, estava fazendo como qualquer playboy à caminho de uma micareta ou de uma festa hypada de minimal electro: eu estava indo apenas pelo evento.
Na noite de quinta-feira acabou o suspense de um céu nublado que já vinha ameaçando castigar o Rio há duas semanas. Não menospreze a chuva que caiu, a própria fúria divina em forma de sublimação meteorológica; uma daquelas intempéries que já fizeram a má fama do sistema de escoamento da cidade (março de 1986). Existe um episódio de "Os Simpsons", no qual o Spinal Tap se apresenta em Springfield: como a cidade não tem uma arena apropriada para shows, a banda de Christopher Guest e cia. é obrigada a apresentar-se no palco improvisado: nada menos que o rinque de patinação local, descongelado apenas no dia anterior e repleto de perigosas poças d'água. As goteiras onipresentes da Fundiçao Progresso fizeram do show do Interpol um misto de apreensão e vergonha: apreensão, pois as goteiras se distribuíam não apenas sobre o público como também no palco, a alguns centímetros do vocalista (e o perigo eminente acabou se concretizando, como descreverei a seguir); vergonha porque alimenta ainda mais o imaginário gringo do Rio de Janeiro como uma versão "parque temático" de Cuba: um abandono rústico cool, perigoso, mambembe (uma impressão que é verdadeira e falsa ao mesmo tempo). Poderíamos até dizer que, para um público que se apresentava em massa para cantar em uníssono letras melancólicas e festejar a própria miséria, tal tempestade era uma dádiva, mas a lama nos Vans brancos provavelmente indicariam o contrário.
Sem querer ser provocativo, mas as músicas do Interpol eram para mim como alguns funks cariocas, músicas da Ivete Sangalo ou uns desses dance-farofas de rádio: você não gosta delas particularmente, mas sua presença se faz tão maciça ao seu redor que acaba-se absoverdo-as por osmose - quando menos se espera, lá está você assobiando o refrão de "Love Generation" inconscientemente. Principalmente no caso do Interpol - presença hors-concours em qualquer festa de rock alternativo (esse termo ainda se usa?), mas banda com a qual me encontro ligeiramente fora de sincronia emocional. Estes sucessos de pista dos nova-iorquinos caracterizam-se por um rebuscamento lírico (um tantinho pretensioso, convenhamos) à beira da verborragia, por um cinismo desolado(praticamente toda a letra de "Evil", discutivelmente o grande hit), e ainda alguma punição e determinismo ("Slow Hands" e "The Heimlich Maneuver"). Não que eu seja afortunado ou alienado ao ponto de não reconhecer tais sentimentos - evocados com maestria pelas letras de Paul Banks, é verdade - mas simplemente não me identifico mais com eles. Então, quando enfrentei a tempestade à caminho da Fundição Progresso, estava fazendo como qualquer playboy à caminho de uma micareta ou de uma festa hypada de minimal electro: eu estava indo apenas pelo evento.
Na noite de quinta-feira acabou o suspense de um céu nublado que já vinha ameaçando castigar o Rio há duas semanas. Não menospreze a chuva que caiu, a própria fúria divina em forma de sublimação meteorológica; uma daquelas intempéries que já fizeram a má fama do sistema de escoamento da cidade (março de 1986). Existe um episódio de "Os Simpsons", no qual o Spinal Tap se apresenta em Springfield: como a cidade não tem uma arena apropriada para shows, a banda de Christopher Guest e cia. é obrigada a apresentar-se no palco improvisado: nada menos que o rinque de patinação local, descongelado apenas no dia anterior e repleto de perigosas poças d'água. As goteiras onipresentes da Fundiçao Progresso fizeram do show do Interpol um misto de apreensão e vergonha: apreensão, pois as goteiras se distribuíam não apenas sobre o público como também no palco, a alguns centímetros do vocalista (e o perigo eminente acabou se concretizando, como descreverei a seguir); vergonha porque alimenta ainda mais o imaginário gringo do Rio de Janeiro como uma versão "parque temático" de Cuba: um abandono rústico cool, perigoso, mambembe (uma impressão que é verdadeira e falsa ao mesmo tempo). Poderíamos até dizer que, para um público que se apresentava em massa para cantar em uníssono letras melancólicas e festejar a própria miséria, tal tempestade era uma dádiva, mas a lama nos Vans brancos provavelmente indicariam o contrário.
Deu o que tinha que dar: praticamente em cima da mesa de som, abre-se uma verdadeira cachoeira. Uma queda d'água de chuva imunda, acumulada por horas, a cair ininterruptamente sobre computadores e público por vários minutos. No final de um dos números, o feed das guitarras é interrompido e força a banda a se retirar do palco. O público em torno da mesa de som foi surpreendido pela estranha visão de todos os monitores e luzes apagados. E, de repente, não havia mais luz no palco. Os técnicos sobem com lanternas em punho, tentando resolver o problema. Mas o problema deixara de ser fio solto: alguém teria que ir no vizinho para ver se tinha algum fusível para emprestar.
Passa a existir uma silenciosa camaradagem entre os mais opostos dos indivíduos quando estes se percebem juntos na mesma merda. Falta de som não é um motivo pequeno para se cancelar um show por completo; já vimos shows sendo interrompidos por problemas bem menores. Quando o público, mesmo com chuva e falta de energia elétrica (além de "Bento Carneiro", o morcego-mascote da Fundição Progresso que ofereceu seus maravilhosos vôos rasantes sobre o público durante o intervalo), não arredou o pé apenas para descobrir que, ao contrário do que se espera de muitos gringos, o Interpol havia esperado nos bastidores para continuar, assim como eles, o show, que estava meia-bomba até então, explodiu nos números finais com um misto de gratidão, surpresa e identificação entre artista e público. Solidificou-se um compromisso: eles queriam definitivamente tocar, nós queríamos definitivamente vê-los, e nos respondemos simultaneamente. As falhas - controláveis ou incontroláveis - como no cinema acabam aproximando público e artista no aconchego da casualidade, revelando a idéia e a vontade que normalmente ficam escondidas em valores de embalagens. Contos de bastidores revelam que a banda achou os shows de SP e BH "great", mas o do RJ foi "fucking awesome".
O show do Interpol na Fundição Progresso merecia um DVD. Não porque fora perfeito; afinal, estes shows para DVDs tem seus números gravados diversas vezes para atingir uma perfeição artificial (o que deseduca a maioria do público a exigir desses eventos essa precisão sintética, cinematográfica, impossível). Merecia um DVD porque foi uma experiência dramática e que rendeu uma série de emoções espontâneas dos artistas e dos espectadores. Foi um show para entrar na memória porque improvavelmente aconteceu até o fim (com direito a bis duplo) e contra todos os obstáculos provou o seu valor. Nem os banhos de querosene que o público foi obrigado a tomar em casa para se limpar da enchente imunda que os aguardava na saída conseguiu apagar o gosto bom que o show acabou deixando.
E sim, passei a gostar mais do Interpol após a apresentação. Até comprei uma camiseta no final, ainda que apenas para me relembrar da confortável sensação de estar seco de novo.
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