blogINDIE 2006
Uma sessão de "Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal" em algum cinema do Rio de Janeiro

Os únicos assentos restantes estão marcados em verde na tela do computador, todos nas primeiras fileiras. "Jesus...", eu exclamo. A bilheteira ri. Escolho C-13. Tenho a certeza de que por escolher uma poltrona praticamente dentro da tela, eu roubei o lugar de algum crítico da Contracampo.

ANÚNCIOS GERAIS:

Em "A República" de Platão, Sócrates prega que, para que as crianças se tornem boas cidadãs - especialmente as destinadas a se tornar guerreiras - elas deveriam ser privadas de narrativas como a "Odisséia" de Homero, cuja história de deuses cruéis e do sofrimento nada poderiam trazer de benéfico para sua educação. Ao invés disso, elas deveriam ser educadas apenas com histórias sobre grandes feitos, positivas, edificantes, para assim construírem caráter, auto-confiança e senso de dever e sociedade.

Fico eu imaginando o que Platão e Sócrates achariam então da notícia-real-transformada-em-espetáculo-cinematográfico projetada na tela: o boletim eletrônico do Último Segundo anuncia a lei paulistana que não indicia mais usuários de droga por tráfico. A manchete vem acompanhada de uma foto genial: três linhas de cocaína esticadas para uso imediato, adequadíssima para uma sessão de um cinema repleta de crianças. Às 16h. da tarde. Claro, liberdade de imprensa, sempre. Mas será que a imprensa precisa ser sempre esse órgão degenerante da sociedade, provocando os limites e depois se jogando no chão, fazendo-se de vítima ao ser publicamente atacada por seus abusos? Quando é que nós permitimos o "Tudo tem sua hora e lugar apropriado" ser confundido com censura?

Se as histórias edificantes ajudavam a criar heróis, membros dignos da sociedade, o que uma história como "cheirar agora está na moral com o guarda" cria? Será que, numa história, a realidade paralizante e claustrofóbica é preferível a uma fantasia benéfica, educativa e encorajadora, com efeitos positivos na sociedade a longo prazo? Bem vindo ao pesadelo do "real", termo este que lentamente se torna ultrapassado, inexato.

COMERCIAIS:

>> De uma revigorante fúria kinética esta nova campanha "Rala Que Rola" da Nike, que só não é uma obra-prima porque Guy Ritchie está claramente chupando o clipe "Smack My Bitch Up" de Jonas Akerlund (mais do que na idéia, mas também no tom intenso e ríspido). Quando assisto a este comercial, eu, que nunca pude ligar menos para futebol, tenho vontade de escancarar a porta de casa, correr para a rua, fazer flexões até vomitar e causar pânico social chutando bolas a esmo nos transeuntes distraídos. Repleto de astros da chuteira em pequenas pontas (Wayne Rooney, Cristiano Ronaldo, o elenco europeu), este épico relâmpago sobre a ascenção, queda e rendenção de um jogador de futebol é uma peça audiovisual de energia bruta, capaz de comover com uma potência que alguns longas sequer ousam em sonhar, que manda uma rajada de eletricidade e testosterona pelo corpo.

>> O inverso total pode ser dito de outro comercial cujo gancho bizarro é ter Dan Stulbach fazendo malabarismos de street dance, algo inconcebível para uma figura como Dan Stulbach. Talvez com isso, o publicitário queira nos dizer que com tal produto - que o comercial falta grosseiramente em fazer marcante (pela carga incomensurável de horripilância da peça, trilhada a uma versão Ti-Hi de um dance tenebroso dos anos 90 de Scatman John), eu sinceramente não sei o que estavam anunciando - o consumidor seja capaz de realizar coisas tão inimagináveis quanto o tal street dance de Dan Stulbach. Mas como não se trata do próprio Stulbach fazendo os movimentos, e sim um dublê muito mal integrado por efeitos digitais para lá de mal feitos, a mensagem se subverte por inteiro: o consumidor não será capaz de dançar street dance ou qualquer outra coisa impossível. Seus sonhos não se tornarão possíveis para você, mas para outro como você, e por sua causa.

>> Já que estamos no assunto comerciais, falemos do anúncio da Perdigão, onde várias figuras da sociedade se deleitam com a mortadela da marca ao som do tema de Nino Rota para "O Poderoso Chefão". Das duas, uma possibilidade e uma certeza. A possibilidade como sugerida pelo anúncio: Perdigão é uma marca de frio de/para mafiosos. A certeza: "O Poderoso Chefão" se assume sendo um filme família dos mais SuperCine, passado num cenário de máfia italiana tão artificial e asséptico, higienizado de sua derradeira crueldade e violência para os espectadores que precisam preservar a fantasia de sua própria maturidade intelectual (mas que não suportam ter os sentidos violentados pela realidade do universo que exigem testemunhar enquanto "arte"), que não surpreenderia caso se tornasse uma montanha-russa temática na Disney (prova derradeira: hoje o filme "de máfia" é um comercial da Perdigão). Francis Ford Coppola odiou fazer "O Poderoso Chefão", pelas pressões dos produtores, especialmente Robert Evans, que vai ao ponto de chamá-lo de "imbecil" em "O Show Não Pode Parar", contando a verdadeira história da conturbada produção. Ou seja, o filme é regido pelo signo do erro, sem pai, sem discurso, sem visão. Filmes com história semelhante acabam sendo eventualmente esquizofrênicos, várias vozes fortes disputando para ser a derradeira. "O Poderoso Chefão" é um filme mudo, sem voz própria: não há a voz de Coppola (ele admite), não há a voz de Evans (ele admite), não há a voz de Puzo (que não se pronuncia realmente). Talvez seja exatamente por causa dessa total falta de personalidade narrativa que a maioria das pessoas ame "O Poderoso Chefão" como uma grande obra: por não ter um dono, as pessoas se sintam livres para se apropriarem dele.

TRAILERS

>> "As Crônicas de Nárnia: No épico desta temporada, o Príncipe Caspian combate seu inimigo mortal: o Selsiun Azul." Engraçado como príncipe de filme tem sempre cara de modelo/ator/manequim (por que será?). Nesta época em que exigimos o realismo mais precioso de nossos filmes mais fantásticos, por que a platéia ainda não está amadurecida para conceber um príncipe com a cara do Príncipe Charles? Eu não vi o primeiro porque, sinceramente, "O Leão, A Bruxa e o Guarda-Roupa" soa como título de filme de suruba e eu me recuso a assistir pornô com cachorro, cavalo, anão ou móveis indefesos.

>> O que há de errado com esse pessoal da Pixar? Caralho, 15 segundos do trailer de "Wall-E" e eu já estava pronto para chorar horrores. "A Terra foi abandonada." Que horrível! "Mas um robô foi deixado para trás, com a responsabilidade de limpar o planeta." Cacete, que triste. "E o robô desenvolveu personalidade e se sente sozinho": o coração aperta, os olhos umedecem. "E então ele, que nunca teve um amigo, recebe a visita inesperada do espaço." Ah, quer dizer que ele finalmente encontrou alguém? Que emoção, vou chorar, puta que o pariu! "Mas quando eles levam sua companhia embora, o robozinho vai atrás da única amiga que jamais conheceu." E as imagens de sacrifício intergaláctico do robô indo atrás desta "única amiga que ele jamais conheceu" me fazem quase querer cortar os pulsos de emoção/depressão. O trailer acaba e quase que me levanto e vou embora, na impressão de já ter visto o que vim ao cinema assistir.

Os filmes da Pixar são mais deprimentes do mundo, de fazer Ingmar Bergman xingá-los de inveja de dentro do caldeirão lá no inferno onde ele cozinha por ter espalhado a angústia pela humanidade com seus filmes. Eles são sempre assim (especialmente ao se tratar dos de Brad Bird, que vem deprimindo geral desde o grande clássico do chororô animado "O Gigante de Ferro" - eu vomitei de tanto chorar com este filme): um final totalmente pra baixo, arrasador, maquiado de feliz através de seu prolongamento, seja com uma transformação no tom, seja pela inclusão de uma pequena piadinha de encerramento. Vejamos o caso dos filmes mais recentes: "Os Incríveis" e "Ratatouille" (que ninguém me tira da cabeça: aquilo é um filme de horror dos mais tenebrosos; eu quase passei mal assistindo-o, tamanha a ânsia provocada pela idéia de ratos de esgoto humanizados e cozinhando, a prática onde mais se preza a higiene do indivíduo). No primeiro, uma tenebrosa mensagem de acomodação: se você tiver algum talento especial, não o revele a ninguém, disfarce-se dentro da sociedade e evite o sofrimento de ser diferente dos demais (o que é uma mensagem anti-homossexual, anti-negros, anti-semita, etc. - o que explica a enorme popularidade do filme). É absolutamente deprimente como os pais transmitem essa mensagem aos filhos (o menino se prostra de ganhar uma corrida, a menina gótica aquiesce para as pressões do colégio e vira uma patricinha - afinal, góticos não podem ser felizes jamais, até porque a depressão é a condição gótica para a felicidade). E em "Ratatouille", ecoando o tema de "Os Incríveis", a verdade traz desgraça a todos ao redor e arruina as carreiras do cozinheiro, do crítico, etc. Mesmo que se possa argumentar que o final derradeiro deste filme seja feliz, perto dos acontecimentos que o antecedem e sua prontificação em apresentar seus efeitos sem mostrar a forma como se desenvolvem, este final-final mais me parece com a última projeção de alegria de uma alucinado que tudo perdeu, idealizando a felicidade futura que nunca virá. A alegria do final derradeiro é simplesmente ideal demais para ser "real". Avançasse "Ratatouille" um pouco mais na sua duração, voltaríamos deste delírio para a realidade deprimente de Rémy, destituído, sem amigos, de volta ao mundo que sempre rejeitou, apenas um rato.

Então, eu não tenho dúvidas. "Wall-E" vai me detonar. Vou chorar horrores. Chorei horrores com "Um Robô em Curto-Circuito", tanto no primeiro quanto no segundo. Aposto que ele não vai recuperar a única amiga que teve na vida. O filme pode até inventar um final piadinha, no qual Wall-E ganha um outro amigo, mas eu já vejo ele tendo que se despedir de sua amiga para sempre. E eu vou chorar. Vou chorar até vomitar. Isto quer dizer, a menos que eu faça algo a respeito... [engatilha a espingarda]

>> O FILME

Já passou o logo da LucasFilm, já passou o logo da Paramount, já se anunciou o título do novo filme de Indiana Jones. E as luzes da sala ainda não se apagaram. Essa mania da gerência de manter a sala acesa até o derradeiro minuto empata a foda da necessária aclimatização do espectador na atmosfera de um espetáculo cinematográfico. Tudo para dar a impressão ao espectador faminto ou com vontade de dar uma barrigada esperta que "ainda dá tempo de ir lá fora". Mas não dá tempo de ir lá fora. Não dá tempo de ir lá fora nunca mais.

[crítica do filme sendo cuidadosamente tecida]
  Bernardo Krivochein    sexta-feira, maio 23, 2008
 
 
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