“To shoot” é o verbo inglês empregado tanto para o ato de filmar quanto para o ato de disparar uma arma (uma vez que tanto câmera e pistola são acionadas por gatilho). Em cima desta dualidade (cinema, que é vida, é também a indústria da morte) trabalhará George Romero neste impressionante auto de vitalidade, que recupera a figura metafórica dos zumbis de um engajamento empoeirado tipicamente setentista e, transportando-os para a era da informação, os injeta com uma carga de relevância. Ao que o cinegrafista Jason Creed implora como um último desejo a sua namorada, Debra, que o “shoot”, perdida na confusão entre documentário e ficção, fato e fabricação, entretenimento e informação, “Diary Of The Dead” e “The Death Of Death” (o documentário acidental realizado por estudantes e que Romero se apropria para fazer o seu próprio filme de horror), ela não arrisca e dá ao rapaz os dois sentidos do verbo: filma-o ao mesmo tempo que o mata. Nunca o ato de filmar foi tão abertamente responsabilizado pelas mortes que registra e denuncia – uma vez que o filme precisa delas para justificar sua existência, como se o cinema vampirizasse a humanidade, de certa forma. Aqui, Creed e companhia, inseguros sobre o que o futuro lhes reserva, preferem filmar as mortes do que auxiliar as vítimas sendo devoradas a meros centímetros de distância.
A ética assumida: Debra introduz o filme que veremos a seguir, escancarando detalhes técnicos - o modelo das câmeras utilizadas, a equipe e suas funções. Ao que em qualquer outro filme típico, tais detalhes de making of serviriam para romper justamente com o vulto ilusionista do espetáculo cinematográfico, em "Diary Of The Dead", cuja proposta mais fantasiosa é a de ser um documentário (algo "real"), a assunção desalienante de sua maquinária e metodologia serve para levar a própria sugestão da ficção ainda mais adiante. Ao longo do filme inteiro veremos cenas de ação, apenas para revê-las logo em seguida "cruas", ou seja, sendo montadas no laptop de Creed até atingirem a forma como a conhecemos inicialmente, numa impressionante subversão da organização cinematográfica (exemplo de destaque: o ataque do grupo de estudantes por um grupo da resistência e seu seqüestro até o galpão). Com este efeito (de que a cena existe antes mesmo dela ser feita derradeiramente) Romero joga a perspectiva do espectador para muito além do conflito documentário-ficção, como se "Diary Of The Dead" pertencesse a esta dimensão esquizofrênica que insiste em confundir a imagem organicamente real e aquela encenada para deslumbrar: nosso mundo.
Debra confessa a utilização de uma trilha-sonora com fins de efeito: "nosso objetivo [ainda] é assustá-lo." Felizmente, tanto Romero quanto Debra estão de acordo ao priorizar o cinema de horror do que o cinema de sugestão ideológica. O retorno de Romero ao mesmo gênero que ele ajudou a estabelecer e definir, realizando sob o signo de um grande estúdio "Terra dos Mortos" em 2005, rendeu uma reflexão aterradora: e se George Romero não passar de um George Lucas do horror e, assim como este, estiver mais do que disposto a profanar sua clássica trilogia com mais uma "nova trilogia", deslumbrado pelas possibilidades digitais tão facilitadoras e pelos orçamentos mais generosos? Da mesma forma que Lucas, Romero deu a todos um sinal sombrio daquilo que viria, ao que "Terra dos Mortos", longe de ser um filme ruim, era uma obra completamente inexpressiva enquanto filme de horror, imediatamente esquecível, afetada pelo espírito de "superprodução" (e o era, em termos Romerianos) e pelas intromissões famosamente impostas pela Universal sobre o produto final. Para ostentar o logo vintage da Universal, "Terra dos Mortos" comprometera o impacto e crítica de seu autor, tornando-se no terço final uma bad trip de "Poltergeist 3" (em tempo: o japonês "Tokyo Zombie" e "Terra", realizados basicamente na mesma época, compartilham exatamente o mesmo pathos, mas a crítica social da sociedade elitista enclausurada no condfomínio/fortaleza de luxo é muito mais mordaz no filme de Tadanobu Asano do que no de John Leguizamo). Romero precisa desta liberdade que "Diary Of The Dead" novamente lhe proporciona, porque o que ele tem a vociferar sobre o mesmo complexo midiático no qual a Universal/Vivendi cumprem papel de destaque não é nada lisonjeiro (especialmente agora, tendo conhecido a besta de dentro de suas entranhas). Ainda um jovem revolucionário em seu coração, Romero em "Diary" faz uma carta de amor à iniciativa independente - cinematográfica, jornalística, que seja - única detentora da verdade e único meio de expressão em que a voz do autor pode reverberar sem obstáculos ou manipulações. O tempo é generoso e nos faz perceber "Terra dos Mortos" como um acidente necessário de percurso (como "A Vila" foi para Shyamalan, realizando o magnífico "A Dama na Água" quase que por despeito do fracasso do filme anterior) através do qual Romero pôde redescobrir uma indignação propulsora. Quando jornais impressos insistem em sua cruzada contra a informação digitalizada, contestando os mesmos blogs dos quais fazem uso seus contratados (para se manter relevantes), o filme de Romero ergue a bandeira do individual. Nada de abrir mão da voz própria e vestir a camisa do meio empregador: o jornalista que defende os interesses do jornal, o diretor que abre mão de sua visão em nome dos interesses do estúdio; daí ser um questão tão essencial para Creed continuar filmando - "ele está exatamente onde quer [atrás da câmera]", diz Debra. Não se trata de uma questão de confiabilidade, ao que Romero está evoluído demais para o argumento cansado que as fontes da mídia eletrônica independente não são confiáveis (como se os jornais e revistas fossem sacrossantos para atirarem a primeira pedra): "a maioria dos vídeos que surgiram na web era besteira", diz Debra dos relatos videográficos que pipocam no You Tube com o apocalipse zumbi. Para Romero, importa sobretudo esta possibilidade livre, desinteressada e irrepreensível de se expressar, que, por ser marginal e burlar os padrões oficiais de qualidade e conteúdo, pode perfeitamente ser o único veículo da verdade numa situação de crise.
Logo, o filme (um road movie zumbi, se é que já existiu algum) se desenrolará não como mais um capítulo ramificado de "A Noite dos Mortos-Vivos" (ainda que "Diary" venha a reprisar situações-chave deste, especialmente o final crítico), mas como uma versão bastante particular de "Os Invasores de Corpos", uma vez que tal filme sintetiza a própria tese do diretor (bastante Baudrillardiana) sobre uma sociedade anestesiada pela documentação e transmissão imediata de eventos trágicos mundiais, induzida a aceitar qualquer informação atribuída a estas imagens (por meio da narração do âncora ou da edição) como imaculada: os seres humanos morrem/dormem e acordam transformados por um vírus invisível, assertivamente respeitando um padrão de comportamento irracional. Assim sendo, Romero também reaproveita imagens de noticiários e as manipula a seu prazer, inoculando seu sentido "real" e fazendo-as servir a sua narrativa ficional. Os conflitos dos descendentes de argelinos em Paris, as revoltas raciais em Los Angeles, os massacres em Serra Leoa, as tragédias do mundo (oh, não brinquem com estas imagens, onde foi parar o respeito, etc.) agora ilustram o holocausto zumbi fabricado por Romero, num súbito, sem esforço. Estas imagens transmitidas em loop contínuo quase como querendo inspirar sobre um espectador um "mea culpa", a culpa de se estar assistindo, a culpa de ser espectador. E Romero libertará o espectador da culpa como liberta a mídia independente da falsa ética que rege a oficial. Neste sentido, "Diary Of The Dead" é o anti-"Funny Games" de Michael Haneke, ou o anti-"Tropa de Elite". Quem filma - neste caso, significa "quem acusa" - é também responsável. O diretor se solidariza com o público do cinema de horror, boneco de Judas em discussões sobre a influência do entretenimento sombrio no comportamento de psicopatas, colocando todos no mesmo nível, artista e receptor. Quando os conglomerados jamais assumiriam o erro dos seus, jogando-os sós aos leões e preservando seu prédio de escritórios, Romero incorpora a nobreza dos independentes, fazendo mais um filme moralmente repreensível e se dispondo a qualquer julgamento público, feito um mártir. Romero quer morrer na cruz do politicamente correto para nos libertar dos pecados dos falsos justos.
"Diary Of The Dead" EUA, 2007. 95min. Direção: George Romero. Estrelando: Michelle Morgan, Joshua Close, Scott Wentworth, Joe Dinicol, Shawn Roberts. Distribuidora: Imagem Filmes. Site oficial: http://www.myspace.com/diaryofthedead
Bernardo Krivochein