E mesmo assim, sob o mais rígido controle, "Cronocrímenes" é um filme estranhamente selvagem, imprevisível na previsibilidade, onde as surpresas surgem de quão restrita às regras as ações se desenvolvem. Sem invenções ou subversões às regras, Vigalondo consegue impressionar e envolver. Claro, ele precisa forçar um pouco a barra (especialmente nos eventos que levam o protagonista a descobrir a identidade do misterioso homem de rosto enfaixado que o perseguia), mas é apenas o tranco inicial no que é uma viagem perigosamente segura/seguramente perigosa. Conterrâneo de Alejandre Amenábar, Vigalondo reforça a proposta bastante peculiar do cinema espanhol para o cinema fantástico: o mash-up inesperado de gêneros, os desvios da narrativa para lugares insólitos. O cinema fantástico espanhol se desenvolve a parte dos outros cinemas fantásticos mudiais, que pulverizam os gêneros. No cinema fantástico espanhol, eles se convergem e se tornam indistinguíveis.
"Cronocrímenes" é a antítese do suspense - e eu o digo como o maior dos elogios, tal qual o filme se revelasse modestamente revolucionário. De certa forma, o filme não apresenta uma verdadeira progressão: o aumento da tensão ocorre a partir dos momentos em que apenas descobrimos como as engrenagens funcionam, uma vez que a máquina está operando perfeitamente. Aguarda-se de todos esses filmes de viagem no tempo o momento mirabolante em que, muito ao estilo de Ray Bradbury e do "efeito borboleta", as coisas darão errado e projetarão efeitos incorrigíveis no futuro (o filme brincará normalmente com isso, esfregando na cara do público seu espírito de porco, que exige de seu entretenimento as tragédias e os empecilhos). Mas "Cronocrímenes", de maneira muito irônica para o tipo de ficção-científica que representa, é um filme estacionário, fincado firmemente no presente. Não é um filme de hipóteses: "e se..." É um filme de soluções: "e agora?"
De forma que os conceitos de viagem no tempo apresentados no filme não vislumbram hipóteses de como viabilizá-la: ela é possível, já existe e funciona perfeitamente. Também não disserta longamente sobre as éticas de tal atividade, conflitos teóricos e existenciais, etc. Fosse fazê-lo, certamente o filme se empalideceria frente ao (excepcional) independente "Primer", praticamente um tratado científico sobre viagens no tempo. "Cronocrímenes" preferirá sobretudo acusar sua futilidade, seja ao explorar os motivos fúteis em nome dos quais as pessoas provavelmente a empregariam, seja na sua derradeira ineficiência. A viagem no tempo, mais do que apressá-lo ou retardá-lo, seria utilizada para suspendê-lo.
"Cronocrímenes" é um filme preocupado em acertar suas pendências acidentais e propositais. Apesar de aparentemente simples (elenco híperlimitado, poucos efeitos, apoiando-se muito mais em seu conceito mirabolante), sua engenhosidade é custosa (a produção está orçada em algo de 2 milhões de euros) exatamente por ser um filme sobre exposições acima de meras sugestões. "Cronocrímenes" é um filme de idéias sendo postas em prática. Vigalondo acredita na materialização destas, acima de tudo. A idéia ruim (mal concebida e mal executada) dá a partida muito necessária nas ações; a boa idéia, inspirada pela má, conclui a comédia de erros e a amarra com uma justificativa. Há sim uma crença na revisão, mas não se atinge a rendenção através dela (o personagem ainda precisa fazer algo horrível para tentar estabelecer a "normalidade"), ou seja, os erros continuam existindo. Portanto, esta revisão não é a constipação criativa acovardada pelas possíveis recepções negativas de terceiros, levando o autor a insistentemente trabalhar sua obra sem publicá-la; a revisão, caminho para se alcançar a perfeição, é realizada através de novas obras, mais conscientes, mais rebuscadas. Aparentemente irônico com o protagonista, capitão nesta acidentada via, "Cronocrímenes" é muito generoso para com o espírito empreendedor.
Nenhum crime é perfeito e certamente haveriam revisões a fazer, mas ao contrário da maioria das produções de primeira viagem, "Cronocrímenes" está próximo do absolutamente sublime, uma vez que é feito com o desejo de existir exatamente como é, em pequena escala e babando de ambição cinematográfica (ao que cineastas de primeira viagem normalmente tem que se conformar com um conceito e orçamento aquém daquele que prefeririam materializar em filme). Deveríamos agradecer a não-perfeição do filme e a estas pequenas revisões que permitirão que Vigalondo retorne a nós com desejo de acertar de uma vez por todas, várias e várias vezes no futuro.
"Los Cronocrímenes" Espanha, 2007. 88min. Direção: Nacho Vigalondo. Estrelando: Karra Elejalde, Candela Fernández, Bárbara Goenaga, Juan Inciarte, Nacho Vigalondo. Distribuidora: Magnolia Pictures. Site oficial: http://www.loscronocrimenes.com/
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Uma criatura na minha cabeça estava tentando me convencer a assistir "1,2,3 Whiteout", ficção-científica independente da França, sobre uma mulher trabalhando como assistente de um cientista pesquisando a "escuridão positiva", sessão de 19hs. no Estação Botafogo. Ao que parece, a estética experimental integra found footage à sua narrativa reflexiva. Mas como ainda estou imprestável de ter saído ontem à noite e curto de grana, estou reservando o dinheiro e a energia apenas para as sessões que não quero realmente perder, não podendo descobrir todos os filmes que gostaria. Fica então esta mensagem de desencargo de consciência, caso o filme venha a se revelar a surpresa do festival, com um bando de textos entusiasmando-se apenas para tentar humilhar os que o perderam e jamais o verão. Segue o trailer.