Mais chuva, mais frio e mais filmes de cinema fantástico (termo que será suspenso para análise após o término do festival) nesta sexta-feira. Dia de "A Vanguarda", "Blood Car" e do aguardado "Zibhakhana - Estrada Para O Inferno", o primeiro filme paquistanês de zumbis que, se meus cáluclos estiverem certos, também será o primeiro filme paquistanês que essa galera vai ter visto na vida ever. Por motivos de saúde e orçamentários (até porque minha sensibilidade para galhofa anda em baixa), pulei todos para arriscar um não muito aguradado: o italiano "Il Bosco Fuori". O tempo ajudou na escolha, já que o clima estava perfeito para um bom slasher-espaguete.
Programados para a mesma sessão, "Harvest" e "Il Bosco Fuori" apresentam semelhanças que vão além das temáticas. Semelhanças de infelicidade fotográfica. Tanto o curta do britânico Rob Nevitt (fazendo sua première mundial no festival, com o diretor presente na casa) quanto o longa-metragem de Gabriele Albanesi, batalhando a nobre guerra contra o orçamento limitado (ambos são bravas iniciativas independentes), acabam tropeçando em alguns cuidados básicos de iluminação e posicionamento de câmera (perfeitamente evitáveis, como compensação de luz exterior com a interna), isto é, não raro, os diretores de fotografia sem saber ou querer calibrar as câmeras, colocavam os personagens em luz de contra a ponto de não podermos enxergar nada. Vultos pretos falando. Pontos salpidcados de luz num breu irreconhecível. Há este problema bastante peculiar ao vídeo digital: porque ele é sensível a luz e normalmente uma iluminação tipicamente cinematográfica para película se traduziria de forma chapada e artificial no digital, os diretores de fotografia normalmente me parecem cautelosos. Cinematografia de cinema digital muito raramente vai querer brincar com a luz ou com a sensibilidade dos CCDs, rendendo filmes visualmente aborrecidos; isto quando se consegue se assistir alguma coisa. E não culpe a projeção da Rain, que estava impecável: podíamos percebê-lo quando os filmes acertavam-se com sua técnica.
"Harvest" tem meio cara de curta cartão-de-visitas, aquele primeiro trabalho que só existe para cumprir a meta protocolar de mostrar serviço para viabilizar futuros projetos (ou seja, aqueles que realmente se quer fazer). Tão independente, "Harvest" parece feito a base do completo desespero por algum centavo que fosse e, mesmo sem fundos e leis de incentivo, consegue ser superior ao outro britânico visto ontem, "The Un-Gone". O conceito não é tão ambicioso e o final é mais surpreendente pela gratuidade e pelo timing troncho do que pela revelação em si, mas Nevitt consegue manter-nos intrigados o tempo inteiro, criando uma ótima atmosfera e extraindo do ator principal uma boa atuação, comedida e sem caricatura (ponto fraco do outro curta citado). Na reta final, fica aquela impressão de que tanto o público quanto o próprio Nevitt sabem que o diretor é melhor do que o curta sendo apresentado. Pode ser que com mais dinheiro, mais fé e mais gana, Nevitt se dê verdadeiramente ao que está filmando e nos ofereça um filme mais responsa daqui a algum tempo. Ele parece ser capaz.
CRÍTICA: IL BOSCO FUORI
Entram no cinema um grupo de seis pessoas de mais idade. Senhores e senhoras que se acomodam numa fila. Descobre-se que eles ou são alunos de algum curso de italiano, ou são entusiastas da cultura italiana, ou descendentes de italianos que vieram assistir ao terror "Il Bosco Fuori" pela nacionalidade e levaram jatos de sangue falso na cara. Por algum tempo, eles repetem algumas das palavras ditas pelos personagens, admirando a musicalidade da língua. De repente, a pobreza visual da produção os derrota e eles já estão se questionando mas-o-que-diabos-nós-viemos-assistir-a-isto?, em bom português mesmo.
"Il Bosco Fuori" é um filme bom apesar de si mesmo. Melhor: é um filme mais interessante do que a tosqueira da produção de nível "Hermes e Renato" permite aparentar. Tamanha é a falta de criatividade dos planos e de cuidado com o visual do filme num todo que, tivesse alguém entrado durante uma cena em que a mocinha é seduzida pelo vilão numa mesa de jantar, teria imaginado estar assistindo a algum pornô maliciosamente colocado para rodar na cabine de projeção por um Tyler Durden da vida. Esta é a melhor forma de sintetizar visualmente "Il Bosco Fuori": é um filme de sacanagem só com suas cutscenes, sem a foda. Ou seja, todas aquelas belas atuações de Traci Lords, aquela estética cinematográfica bem cuidada, todos aqueles diálogos rebuscados de "O Telefone Vermelho". Aqui temos um dos momentos perigosos de "Il Bosco Fuori": se um filme de horror é aquele que mais se aproxima de um filme pornô, um cinema de prazer puramente fetichista (visto que diálogos, cinematografia e atuações nele não apenas não importam como atrapalham), o que isso diz sobre nós, que gostamos de cinema fantástico?
Que nós somos lá apenas para satisfazer o prazer por escatologia e degradação, a ponto de ignorar quaisquer outras prostrações do filme caso ele nos ofereça aquilo que fundamentalmente teríamos vindo buscar?
Este é o ponto em que o cinema fantástico se dilui academicamente: quando ele atropela sua ideologia e estética a fim de satisfazer as imposições equivocadas de um clichê estabelecido pelos seus próprios defensores árduos. É o fantasma do cult malandrão, cuja progressão de idéias é completamente ignorada em vista de uma ou duas cenas gráficas, que facilmente o identificam como algo digno de uma coroação underground. A escatologia - ou "gore", para ser compreendido pelos cults - de "Il Bosco Fuori" existe, mas não é nada de revoltante ou digna de nota. Temos facas, pistolas, motosserras (e nunca uma motosserra sôou tão pacífica e não-ameaçadora quanto esta) e um bócio que, claro, só está naquele pescoço para ser estourado. Isto quando conseguimos identificar alguma coisa na escuridão das imagens. A fotografia está mais interessada nos movimentos de câmera do que em se fazer bela, ou sequer compreensível: neste sentido, é divertido perceber o estudo acidental da progressão de estilos no cinema de horror ao qual "Il Bosco Fuori" quer se integrar e constantemente referencia (ainda que o diretor descaradamente deseje ser Alexandre Aja: o filme alude "Haute Tension" no tom cerimonioso e na trilha-sonora, enquanto ameace se tornar "The Hills Have Eyes" quando a personagem alcança um trailer mal habitado por deformados). Os zooms exagerados, fusões de câmera (êta filme para gostar de blur e fade to black) e alguns ângulos prestam homenagem ao clássico terror italiano dos anos 60 e 70, que o caracterizavam. O problema é que, enquanto espiritualmente corretos e simpáticos, o cinema de Bava, Fulci, Argento bancavam essa estética ao que eram bem fotografados - a direção de luz de "Il Bosco Fuori" não passaria pelos critérios de qualidade nem daquela época, quanto menos da nossa.
Dá pena, porque fotografar ambientes escuros com digital é mesmo uma foda: o mínimo de luz registra, mas não ilumina suficientemente o entorno; ilumina-se um pouco mais e uma fogueira na floresta pode ficar parecendo uma rave de tão clara. Albanesi claramente está enfrentando este dilema: o quanto eu posso iluminar sem perder a atmosfera. A escolha parece ter sido "não iluminar nada" (até para esconder as limitações de efeitos especiais). Às noturnas do bosque, ele aplica uma "noite americana" digital que ficam beirando o ininteligível, mas quando os personagens se transportam para o interior de uma casa, com luzes de abajur e de teto - luzes duras, por assim dizer - a coisa ganha todo um ar de dramatização do "Fala Que Eu Te Escuto".
É na afronta moral da narrativa - esfera que dávamos por perdida pela sinopse derivativa - que "Il Bosco Fuori" brilha com categoria: um casal é acolhido por outro após o ataque de um grupo de playboys da Barra, mas descobre-se em piores mãos do que as anteriores. Quando o filme parece que se acomodará num típico "torture porn", com o casal sendo torturado e mutilado enquanto tenta escapar das garras dos vilões, Albanesi recupera o trio de playboys (surgindo sempre dentro de um carro hilariamente chacoalhado para simular movimento) e os reintegra na história. É preciso explicar melhor: Cesare, o playboy principal que se transforma em inesperado herói, quase estupra a protagonista antes de ser interrompido pelos vilões. A forma maravilhosa como Albanesi sublinha a honra dos malditos está no momento em que a mocinha implora por auxílio ao mesmo homem que o atacara anteriormente. Entre o melhor de dois males, quase que lemos no seu olhar (e na tese ilustrada do diretor) que era melhor se deixar ser estuprada do que estar passando este dobrado. Ao mesmo tempo, o amoral Cesare descobre um limite para a própria crueldade. Neste sentido, "Il Bosco Fuori" é um filme incomodamente humano, que nos solidariza terminantemente com um dos piores indivíduos possíveis, uma resposta às protodenúncias dos "Ódiquê" da vida, que caem no lugar comum de ensinar o padre a rezar missa, demonizando a já detestada juventude rica, mimada e escrota. "Il Bosco Fuori" é sua tosca rendenção.
De maneira oportuna, "Il Bosco Fuori" acompanhará a idéia expressa no post abaixo, sobre o elenco que compõe os fãs de cinema fantástico. Os playboys são os heróis que salvam os protagonistas das garras dos nerds enfurnados em suas casas. Feios, espinhentos e psicopatas com síndrome de superioridade, eles levam a pior ao se descobrirem equivalentes ao mesmo tipo de público comercial que desprezam, humilhando o cinema fantástico com sua exigência por incapacidade técnica e escatologia assim como um rato de shopping o humilharia. Belo filme, ainda que mal feito. E eu duvido que eles tenham pago por aquela música do Whitest Boy Alive durante os créditos iniciais.
"Il Bosco Fuori" Itália, 2006. 85min. Direção: Gabriele Albanesi. Estrelando: Daniela Virgilio, Daniele Grassetti, Gennaro Diana, Santa de Santis, David Pietroni. Site oficial: http://www.ilboscofuori.com/
Bernardo Krivochein