Pense então que faz todo o sentido que os heróis norte-americanos, em sua maioria, operem em cidades inventadas pelos autores, e que o Capitão América, designado a um país perfeitinho sem real necessidade de um paladino, esteja morto. Um herói só pode existir num cenário que o exija. E ainda assim, eles só parecem criados em lugares já consideravelmente seguros.
Mirage Man não é um "Marvel". Não é um aluno tímido porém brilhante, não é um cientista genial, não é um herdeiro multimilionário. Para chegar no local do crime, pega um ônibus. O uniforme foi comprado num brechó e customizado em casa. O herói é tão indigente quanto o continente ao qual pertence (ingênuo também, ao que acaba sendo atraído várias vezes para falsas missões). O único CGI do filme, se é que o termo aqui se aplica, é a animação que simula o template da caixa de e-mails do personagem. Até porque as missões não tem nada de espetaculares. De resto, "Mirage Man", tal como seu protagonista, é um filme de força bruta, que precisa se virar para oferecer, dentro de uma situação de carência econômica e social, as action pieces exigidas pelo gênero ao qual pertence. Será apenas lógico que o filme transmita a vibração de ser não um contemporâneo cinematográfico do "Homem-Aranha", mas dos seriados sessentistas como "Batman & Robin", ainda que o cenário seja uma Santiago assumidamente atual. É o nosso atraso obrigatório por negligenciar esta tradição por tanto tempo.
O grande vilão em "Mirage Man" é o preconceito cultural. Não temos a tradição em fazer obras sobre super-heróis (o filme elabora os motivos, ao mostrar a desconfiança do público e mídia com a figura do justiceiro), mas temos o desejo há muito incubado de criá-los. Então temos este segundo mergulho no vazio da dupla Ernesto Días Espinoza e Zaror após a deliciosa caçarola cinematográfica "Kiltro". Naquele filme repleto de referências e delírios pop, cabia ao diretor Espinoza exercer a dominância da situação: "Kiltro" era um filme mais kinético, irresponsável e arriscado ao passo que em"Mirage Man", mais bem concebido, mais redondo e solene, cabe a Zaror ciceronear seu diretor por este terreno perigoso para o cinema latino (sempre temendo se americanizar). Perceba que praticamente não há ação paralela em "Mirage Man" (quando há, normalmente ela é transmitida pela televisão do personagem). Como se Espinoza fosse um dos próprios oprimidos, a câmera sempre está onde Zaror está, protegendo-o. "Mirage Man" é um filme feito sobretudo por quem ama artes-marciais. A câmera de Espinoza durante as cenas de luta (a peça principal deste longa-metragem) privilegia a excelente coreografia ao invés da montagem superestimulante. Altamente fetichizada, as lutas em "Mirage Man", que se estendem muito além do que seria permitido no cinema corrente de entretenimento, tem um efeito hipnótico bem mais do que visceral - ainda que se aplaudam algumas acrobacias espetaculares e até gratuitas da parte de Zaror. Não que haja lentidão ou incompetência aqui: os golpes são rápidos, elaborados e superprecisos, mas aos combatentes é dado a oportunidade de ter talento de combate ao nível do herói e, quando atingidos, o tempo de se recuperar e contra-atacar. Não são lutas cinematográficas completamente artificializadas, tampouco lutas "reais" de rua: são embates de caráter esportivo onde os lutadores parecem adotar estratégias, estudando o oponente.
Apesar de pleno de observações auto-conscientes que rendem as melhores piadas de um filme repleto de ótimo humor, "Mirage Man", quando poderia perfeitamente deslizar para a paródia e para a galhofa, tem o coração no lugar certo: leva o drama do personagem e a ação da história a sério mesmo no seu mais insólito (no caso, a trama com a repórter Carol V. que explora a figura de Mirage Man para subir na carreira). Da mesma forma que o humor não cai para a auto-depreciação (que sempre é, na realidade, pretensão de se acreditar melhor do que aquilo que se consegue fazer), a seriedade não cede à sisudez, ao que o filme equilibra com bastante talento sua comédia com seu desejo genuíno de estabelecer uma via possível para o cinema de entretenimento, influenciado pelo cinema exterior sim, mas ao mesmo tempo puramente latino.
É na fantástica cena ao som de "Life On Mars?" de David Bowie, na qual Carol V. tenta seduzir e desmascarar o vigilante mascarado, em que Espinoza revela suas verdadeiras armas: de tom inicialmente cômico, o diretor vira este momento ao avesso, fazendo-a inesperadamente, dramaturgicamente intensa e digna do melhor clássico do gênero de superheróis. Aqui, Espinoza nos oferece um destes truques de mágica tão maravilhosos que só o cinema é capaz, transformando nosso julgamento por completo, bem em frente aos nossos olhos. Como ele fez isso, transformar a incredulidade em total investimento emocional? Neste momento, apesar dos filtros digitais que o artificializam desnecessariamente, um cinema fantástico superior na América Latina deixa de ser algo vislumbrado para se mostrar concreto.
"Mirage Man" Chile, 2007. 90min.Direção: Ernesto Días Espinoza. Estrelando: Marko Zaror, María Elena Swett, Ariel Mateluna, Mauricio Pestulic, Iván Jara, Jack Arama. Distribuidora: BF Distribution/Magnolia Pictures. Site oficial: http://www.miragemanmovie.com/
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